"Os dados dos usuários são o petróleo da internet"
A aprovação do Marco Civil da Internet, projeto que está à espera de votação na Câmara dos Deputados e define as principais questões relacionadas ao uso da rede no Brasil, representará o fim da insegurança jurídica nessa área. A opinião é do advogado Ronaldo Lemos, especialista em direito digital e um dos idealizadores do Marco Civil. Mestre em direito por Harvard e professor visitante de universidades como Princeton, nos EUA, e Oxford, na Inglaterra, ele analisa aqui o teor do projeto e a questão da privacidade na rede. “Os dados pessoais tornaram-se hoje o ‘petróleo’ da internet”, afirma Lemos, que acaba de se tornar sócio do escritório Pereira Neto Macedo Advogados, de São Paulo. “A questão importante é proteger espaços de anonimato na rede.”
O Marco Civil da Internet está para ser votado na Câmara. Por que esse projeto deveria ser aprovado?
O Marco Civil é determinante para o futuro da rede no Brasil. Hoje,
passados mais de 15 anos de acesso à internet no País, ainda não existe
lei definindo os alicerces civis da rede. Isso foi feito em outros
países há mais de uma década e mostrou-se um elemento essencial para a
inovação. Não existiria o YouTube ou o Facebook se os EUA não tivessem
feito o seu Marco Civil, em 1998. Sem lei, cada juiz fica livre para
decidir a questão como bem entender. O resultado é uma enorme
insegurança jurídica, decisões contraditórias e casos estapafúrdios.
Como as empresas saem prejudicadas num ambiente desses?
Hoje, sem regras, vivemos o pior dos mundos. Não existe segurança
jurídica para os empreendedores na internet. Isso só favorece os grandes
sites internacionais, que têm departamentos jurídicos bem
estabelecidos. Mas o pequeno empresário brasileiro não tem esses mesmos
recursos para lidar com tanta incerteza na rede. Por isso é importante
que uma lei como o Marco Civil defina as principais questões.
Recentemente, o Congresso aprovou as chamadas Lei Carolina
Dieckmann e Lei Azeredo, sobre crimes digitais. Qual sua avaliação sobre
ambas?
A Lei Azeredo foi objeto de um grande debate público, que
aperfeiçoou seu texto, excluindo as redações problemáticas. No fim, a
lei foi aprovada contendo apenas cinco artigos, e não os 22 previstos
originalmente. Isso é positivo. Com relação à Lei Carolina Dieckmann, é
similar. Trata-se de lei que foi construída em amplo processo de
consulta técnica, do qual participei. O resultado é uma lei pontual, que
também evita os efeitos colaterais que poderiam surgir no tratamento
dos cibercrimes.
Essas duas leis se interpõem ao Marco Civil?
Havia um acordo político para que elas fossem aprovadas junto com o
Marco Civil. Isso não aconteceu. A aprovação das leis criminais antes
do Marco Civil passa a impressão de que os problemas “de polícia” têm
precedência sobre todos os outros. Mas ao menos os textos dessas leis
foram harmonizados com os princípios do Marco Civil.
A discussão sobre a privacidade na internet ganha força. Quais os aspectos que devem ser analisados nessa questão?
Os dados pessoais dos usuários tornaram-se hoje o petróleo da
internet. A coleta desses dados são os fatores que viabilizam a maioria
dos modelos de negócio da rede. No Brasil, há um paradoxo: a privacidade
está protegida pela Constituição, mas não existem leis específicas
tratando de forma abrangente o tema.
A possibilidade de o usuário permanecer anônimo na internet divide opiniões. Qual sua posição a esse respeito?
O espaço para o anonimato na web vai se tornar ainda menor com a
modificação do protocolo da rede para o chamado IPv6. Com ele, cada
objeto que se conecta à rede terá um endereço de IP único e imutável.
Isso faz com que a identificação da fonte de uma determinada informação
na rede torne-se mais fácil. As repercussões disso para a privacidade
são muitas. Hoje, a Constituição veda o anonimato na manifestação do
pensamento. Mas e o anonimato na simples busca da informação, sem
manifestar nenhuma ideia? Pense, por exemplo, em alguém que pesquisa na
web sobre tratamentos de uma doença crônica, e o seguro usa esse fato
para subir as mensalidades do plano de saúde. A questão importante é
proteger espaços de anonimato na rede, que estão se tornando cada vez
mais excepcionais.
Qual a distância entre os direitos autorais no Brasil e nos EUA?
O do Brasil é um dos mais restritivos do mundo. Nos EUA existe o
conceito de “fair use” (uso justo), que consiste na possibilidade da lei
autorizar a utilização de obras quando, por exemplo, isso não gera
prejuízo aos autores. No caso da lei de direitos autorais brasileira,
essas autorizações são casuísticas e restritas.
Por que o debate sobre atualização na questão da propriedade intelectual no Brasil aparentemente está parado?
A propriedade intelectual é um assunto complexo. Apesar disso, o País por muito tempo a tratou como algo de pouca importância.
A falta de uma legislação que defina regras para veiculação
de conteúdo diretamente da internet, também conhecido como streaming,
retarda a vinda de empresas de tecnologia para o Brasil?
Certamente. O direito brasileiro tem gerado grande insegurança com
relação à internet. A questão do streaming é só mais um exemplo. A
empresa que hoje trabalha com a oferta de vídeos, especialmente na web,
enfrenta várias questões. Uma delas é se deve ou não pagar ao Ecad
valores sobre a execução de obras musicais. Ou se pode, por exemplo,
obter autorizações das músicas diretamente com os autores. O YouTube fez
um acordo com o Ecad com relação às músicas veiculadas através do site.
Isso não impediu que o Ecad ameaçasse cobrar direitos autorais de
qualquer blogueiro, simplesmente por incorporar vídeos do YouTube em seu
site, uma cobrança dobrada.
Como estão os processos movidos pelas empresas que recorrem para não pagar o Ecad?
Há decisões em vários sentidos. E, eventualmente, há a concessão de liminares suspendendo a cobrança.
Fonte: Istoé Dinheiro
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