Eles não cultivam alimentos, não criam animais e desconhecem calendário e leis escritas. São caçadores-coletores que ainda vivem quase exatamente como há 10 mil anos. O que eles sabem que nós esquecemos?
Foto de Martin Schoeller
"Estou com fome", diz Onwas, ao pé da fogueira, em meio à fumaça. Os homens ao lado concordam com murmúrios. É noite no coração da mata no leste da África.
Um canto, uma entoação ritmada, chega até nós vindo do acampamento das mulheres. Onwas fala de uma árvore que avistou em suas andanças. Os homens em volta da fogueira se aproximam. Está num lugar difícil, explica Onwas, no alto de um morro íngreme que se destaca na planície. E a árvore, diz ele abrindo os braços como se fossem galhos, está cheia de babuínos. Mais murmúrios. Fagulhas sobem para a imensidão estrelada do céu. Decidem. Todos se levantam e pegam seu arco de caça.
Onwas é velho, talvez tenha mais de 60 anos - ano não é a unidade de tempo que ele usa -, mas é esguio e forte como um típico hadza. Deve ter cerca de 1,5 metro de altura. Traz nos braços e no tronco os hieróglifos de toda uma vida na mata: cicatrizes de caçadas, cicatrizes de picadas de cobra, cicatrizes de flechas, facas, escorpiões e espinhos. Cicatrizes de quando caiu de um baobá. Cicatrizes de um ataque de leopardo. Metade de seus dentes ainda está na boca. Ele usa sandália feita de pneu velho e calção marrom esfarrapado. Leva à cintura uma faca de caça embainhada em um estojo de couro de dik-dik. Tira a camisa, como a maioria dos outros, porque deseja se camuflar na noite.
Onwas olha para mim e fala em hadzane. Para meus ouvidos, soa estranhamente bipolar: cadenciada e suave por umas frases, em seguida dissonante e percussiva com estalos de língua e crepitações glotais. É uma língua sem nenhum parentesco próximo de qualquer outra hoje viva - isolada, na terminologia dos linguistas.
Cheguei à terra dos hadzas no norte da Tanzânia com uma intérprete chamada Mariamu. Ela é sobrinha de Onwas. Frequentou a escola por 11 anos e é uma das pouquíssimas pessoas que falam inglês e hadzane. Ela interpreta as palavras de Onwas: eu gostaria de ir junto?
O simples fato de eu ter chegado aqui já é uma proeza. Não são apenas os anos que os hadzas não contam. Eles também ignoram as horas, os dias, as semanas e os meses. Assim, marcar um encontro pode ser complicadíssimo. Mas eu havia pedido ao dono de um acampamento turístico que tentasse dar um jeito para que eu passasse um tempo com um grupo hadza remoto. Durante uma de suas excursões, esse homem deparou com Onwas e perguntou-lhe, em suaíli, se eu poderia fazer uma visita. Ele disse que eu seria o primeiro forasteiro a viver em seu acampamento. Prometeu mandar seu filho a uma determinada árvore na orla da mata para me esperar no dia marcado, dali a três semanas.
Dito e feito: três semanas depois, quando a intérprete e eu chegamos à mata, lá estava o filho de Onwas, Ngaola, a nossa espera.
De início, estava evidente que todos no acampamento - cerca de duas dúzias de hadzas – se sentiam constrangidos com minha presença. Encaravam-me, davam risadas nervosas. Eu trouxe um álbum de fotos, e mostrá-lo ajudou a atenuar o mal-estar. Onwas interessou-se por uma foto de meu gato. No terceiro dia de minha estada, ele pergunta se eu quero me juntar à caçada.
Sim, quero, é claro. Fico de camisa, pois minha pele não se confunde com a noite, e sigo Onwas, outros dez caçadores e dois garotos. Saímos do acampamento em fila indiana. Andar pelo território dos hadzas na escuridão é dureza; arbustos e acácias espinhentos dominam o terreno, e mesmo de dia não dá para evitar arranhões, estocadas e furos.
À noite os espinhos são invisíveis, e orientar-se parece impossível. Não há trilhas e as referência são raras. Deslocar-se pela mata no escuro, sem lanterna, requer o tipo de familiriadade que se tem, por exemplo, com o próprio quarto.
Para Onwas, a orientação não é problema. Ele vive na mata desde que nasceu. Sabe acender uma fogueira girando um graveto entre as mãos. Sabe conversar com um passarinho nativo conhecido como indicador: troca assobios com a ave, e ela o leva a colmeias com mel. Ele sabe tudo o que há para saber sobre a mata, e quase nada sobre o que há além dela.
Mil hadzas vivem em suas terras tradicionais, uma vasta planície que engloba um lago raso e salobro, o Eyasi, abrigada pelas escarpas do grande vale Rift. Alguns mudaram-se para perto de vilarejos e foram trabalhar para lavradores ou como guias de turistas. Mas outros, inclusive os do acampamento de Onwas, continuam a ser caçadores-coletores. Não têm plantações nem animais de criação ou abrigo permanente. Vivem logo ao sul da mesma parte do vale na qual foram encontradas algumas das mais antigas evidências fósseis dos primeiros seres humanos. Exames genéticos indicam que eles podem representar uma das raízes primárias da árvore genealógica humana - originada talvez há mais de 100 mil anos.
O que os hadzas parecem oferecer é um vislumbre de como poderia ter sido a vida antes do surgimento da agricultura, 10 mil anos atrás. Os antropólogos têm o cuidado de não qualificar os caçadores-coletores de nossa era como "fósseis vivos", diz Frank Marlowe, professor de antropologia que passou 15 anos estudando os hadzas. O tempo não parou para eles. Mas esse povo manteve seu modo de subsistir extraindo alimento da mata, apesar de há tanto tempo viver em contato com agricultores nas proximidades.
Por mais de 99% do tempo desde os primórdios do gênero Homo, há 2 milhões de anos, todos viveram como caçadores-coletores. Mas, quando plantas e animais foram domesticados, essa inovação desencadeou uma total reorganização do planeta. A produção de alimentos cresceu com o aumento populacional, o que permitiu às sociedades agrícolas desalojar ou destruir esses grupos. Surgiram povoados, depois cidades e países. Com isso, o estilo de vida dos caçadores-coletores quase se extinguiu. Hoje apenas um punhado de povos esparsos - alguns na Amazônia, dois no Ártico, alguns em Papua-Nova Guiné e um número ínfimo de grupos africanos - mantém uma existência baseada na caça e na coleta. Mas o súbito advento da agricultura teve seu preço. Introduziu epidemias, estratificação social, fomes e guerras.
Os hadzas não entram em guerras. Nunca viveram em grupos com densidade para serem ameaçados por um surto infeccioso. Não têm em sua história nenhum caso de fome coletiva; existem, inclusive, evidências de que pessoas de grupos agrícolas foram viver com eles durante uma época de fracasso na colheita. A dieta permanece, mesmo hoje, mais estável e variada que a da maioria dos seres humanos do planeta. Eles desfrutam de tempo para o ócio. Antropólogos estimaram que os hadzas “trabalham” – procuram comida ativamente - de quatro a seis horas por dia. E, em todos esses milênios, não têm deixado muito mais que pegadas na terra.
Os hadzas tradicionais vivem quase sem posses. As coisas que possuem - um pote para cozinhar, um machado - podem ser embrulhadas num cobertor e carregadas no ombro. As mulheres colhem bagas silvestres e frutos de baobá e escavam tubérculos comestíveis. Os homens caçam e coletam mel. Emboscar babuínos à noite é um ato feito em grupo e apenas algumas vezes no ano; a caça é uma ação individual. Eles comem quase tudo o que puderem abater: ave, gnu, zebra, búfalo, javali e hirace. São loucos por carne de babuíno; Onwas gracejou dizendo que um homem hadza não arranja mulher antes de ter matado pelo menos cinco babuínos. A principal exceção são as cobras. Os hadzas detestam cobra. O veneno com que os homens besuntam a ponta de suas flechas, feito de seiva fervida da flor Adenium obesum, é potente o bastante para derrubar uma girafa.
Um acampamento hadza é formado de parentes consanguíneos, parentes afins e amigos que se associam sem compromisso. Cada acampamento tem seus membros nucleares, mas a maioria vem e vai quando bem entende. Os hadzas não reconhecem nenhum líder. É tradição chamar o acampamento pelo nome de um dos homens mais velhos (“o acampamento de Onwas”, por exemplo), mas tal honra não confere poder especial. Autonomia individual é sua marca registrada. Nenhum adulto tem autoridade sobre outro. Não existem uns mais ricos; ninguém tem riqueza alguma. Há poucas obrigações sociais: nada de aniversários, comemorações anuais.
Cada um dorme quando quer. O amanhecer e a tardinha são as principais horas de caça. No resto, os homens ficam pelo acampamento, endireitando setas, entalhando arcos, fazendo cordas de arco com ligamentos de girafa ou impala, fixando pregos em ponta de flechas. Eles trocam mel pelos pregos e por plásticos coloridos e contas que as mulheres transformam em colares.
Não existem cerimônias de casamento - um casal que dorme ao pé da mesma fogueira por algum tempo pode se considerar casado. A maioria dos hadzas que conheci é monógama serial: trocam de parceiros a cada poucos anos. Onwas é uma exceção: ele e sua mulher, Mille, estão juntos por toda a vida adulta, têm sete filhos vivos e vários netos. Há um bando de crianças no acampamento, e a avó residente, uma senhora miúda e alegre chamada Nsalu, incumbe-se dos serviços de "creche", cuidando da criançada enquanto os adultos estão no mato.
Todos carregam alguma coisa do local da caça para o acampamento. Kapala leva a cabeça de um antílope para a próxima refeição. Seu grupo, composto por parentes e amigos, irá se banquetear até acabar a carne.
Onwas sabe sobre os 20 grupos de hadzas em sua área que permutam seus membros como numa dança de quadrilha. A maioria dos conflitos é resolvida de maneira simples: as partes em desavença separam-se em acampamentos diferentes. Quando alguém traz caça, divide com todos, e em geral o tamanho do grupo não ultrapassa 30 pessoas. Minha visita é feita na estação seca, que dura seis meses, de maio a outubro. É quando dormem ao relento, embrulhados num cobertor fino ao pé do fogo. Os grupos que se juntam para dormir são variados: famílias, homens solteiros, moças (com uma mulher mais velha de guardiã), casais. Na estação chuvosa, constroem pequenos abrigos abobadados feitos de ramos entrelaçados e folhas compridas de capim - um ninho de ave de cabeça para baixo.
Ninguém dorme sozinho. Onwas mandou seu filho Ngaola ficar comigo, e Ngaola recrutou seu amigo Maduru para se juntar a nós. Dormimos ao redor da fogueira. Mas, quando os mosquitos ficam ferozes, vou dormir na minha barraca.
Ngaola é calado e introspectivo, e é mau caçador. Tem uns 30 anos e ainda não se casou - culpa da regra dos cinco babuínos, suponho. Ele exaspera-se porque seu irmão, Giga, é o mais hábil arqueiro do acampamento. Maduru é bom nas andanças pelo mato para encontrar mel, mas não se ajusta bem entre os hadzas.
Maduru é um dos que assume a responsabilidade por mim na noite em que saímos para caçar babuíno. Atravessando a mata, ele vai quebrando ramos de acácia que têm espinhos do tamanho de um palito de dentes. Onwas guia-nos até o morro onde viu uma árvore cheia de babuínos.
Ali paramos. Eles fazem sinais de mão, conversam com estalidos. Não entendo bem o que se passa - minha intérprete ficou no acampamento. Caça é para homens. Mas Maduru dá um tapinha em meu ombro e faz sinal para que eu o siga. Os outros caçadores começam a distribuir-se ao redor da base do morro, e eu colo nos calcanhares de Maduru quando ele mergulha no matagal e começa a subir. O aclive parece vertical e as moitas são densas como Bombril. Espinhos rasgam minhas mãos, meu rosto. Um fio de sangue goteja em meu olho. Escalamos. Sigo Maduru bem de perto.
Por fim, entendo. Estamos subindo na direção dos babuínos. Tentando sobressaltá-los para que saiam correndo. De onde estão, no alto do morro, os babuínos não têm alternativa senão descer. Os hadzas circundaram o morro; portanto, os babuínos correrão na direção dos caçadores.
Você já viu um babuíno de perto? Seus dentes são feitos para rasgar carne. Um macho adulto pode pesar mais de 35 quilos. E cá estamos, escalando, tentando provocá-los. Os hadzas vão armados de arco e flecha. Eu tenho um canivete.
Subimos mais. Maduru e eu emergimos do mato em cima de umas rochas. Vejo a Lua em forma de foice, sinto uma brisa. Estamos perto do topo - que é apenas uma pilha de rochas grandes, talvez 6 metros acima de nós. A árvore dos babuínos está lá no alto, quase visível.
E, então, ouço. Um som estridente, alucinado. Os babuínos percebem que há algo errado. O som denota pânico. Não é difícil interpretar: vão embora! Não se aproximem! Mas Maduru sobe mais, chega a uma rocha achatada. Eu o sigo. Os babuínos estão cercados, e parecem sentir isso.
Abruptamente, um novo som. Estalo de ramos se quebrando acima de nós. Os babuínos descem aos berros. Maduru petrifica-se; com um joelho no chão, empunha o arco, retesa a corda. Está pronto. Eu, atrás, fico na torcida para que nenhum babuíno venha em nossa direção.
A gritaria recrudesce. Acima de nós, a silhueta recortada contra o fundo estrelado, aparece um babuíno. Movimentos atabalhoados. Maduru levanta-se, faz pontaria, segue o babuíno da esquerda para a direita, flecha em posição, arco retesado ao máximo. Cada músculo de meu corpo está tenso. Tenho a mão travada no canivete.
A principal razão de os hadzas conseguirem manter seu modo de vida é que suas terras nunca foram um lugar convidativo. O solo é salobro, a água doce é escassa e os insetos podem ser intoleráveis. Por isso os hadzas foram deixados em paz. Mas pressões populacionais cada vez mais intensas trouxeram uma avalanche de gente. O trato tão delicado que esse povo tem com a terra de certo modo os prejudicou: a região é vista por forasteiros como vazia e inculta, um lugar implorando por desenvolvimento. Os hadzas, que não são um povo combativo, quase sempre se mudam em vez de lutar. Só que agora não têm mais para onde recuar.
Existem na mata dos hadzas pastores de bois e cabras, plantadores de cebola e de milho, caçadores esportivos e caçadores ilegais. As cacimbas estão poluídas por excremento bovino. A vegetação é pisoteada pelos rebanhos. A terra é desmatada para plantio, e a escassa água é usada para irrigação. Os animais de caça migraram para os parques nacionais - para onde os hadzas não podem segui-los. Bosques de frutas silvestres e árvores que atraem abelhas foram destruídos. No século passado, os hadzas perderam a posse exclusiva de até 90% de sua terra natal.
Nenhum dos outros grupos étnicos que vivem na área é caçador-coletor. Vivem em choças de barro, muitas delas em meio a cercados para animais de criação. Vários menosprezam os hadzas, e os olham com um misto de piedade e repulsa: os intocáveis da Tanzânia. Uma vez vi membros da tribo Datoga impedir mulheres hadzas de se aproximarem de uma cacimba comunal enquanto suas vacas não terminassem de beber.
Estradas de terra hoje cortam a orla da mata dos hadzas. Uma estrada pavimentada fica a quatro dias de caminhada. A maioria dos hadzas, inclusive Onwas, aprendeu a falar um suaíli básico para se comunicar com outros grupos. Alguns dos mais jovens me perguntaram se eu podia lhes dar uma arma de fogo. O próprio Onwas sente que mudanças profundas estão chegando. Isso não parece inquietá-lo. Como me disse várias vezes, ele não se preocupa com o futuro. Não se preocupa com coisa alguma. Aliás, nenhum hadza que conheci parece propenso a se preocupar. É uma mentalidade que me assombra, pois os hadzas, no meu entender, têm razões de sobra para preocupação. Comerei amanhã? Alguma coisa me comerá amanhã? Apesar disso, eles vivem no presente.
Mas há outras pessoas que se preocupam, sim, com o futuro dos hadzas. Autoridades do governo tanzaniano para começar. A Tanzânia é um país que olha para o futuro, anseia por entrar no turbilhão da economia global. Silvícolas caçadores de babuíno não são uma imagem que muitos líderes da nação queiram projetar. Um ministro qualificou os hadzas de atrasados. O presidente da Tanzânia, Jakaya Kikwete, afirmou que os hadzas "precisam ser transformados". O governo quer vê-los na escola, morando em casas e trabalhando em uma ocupação decente.
Até um hadza que se tornou um porta-voz oficioso do grupo, Richard Baalow, concorda com os objetivos do governo. Baalow, que adotou um prenome não hadza, foi um dos primeiros a frequentar uma escola. Nos anos 1960 sua família vivia em um alojamento construído pelo governo - uma tentativa de fixar os hadzas, logo malograda. Baalow, de 53 anos, fala muito bem inglês. Quer que os hadzas se tornem politicamente ativos, lutem pela proteção legal de suas terras e procurem emprego como guias de caça ou guardas-florestais. Ele incentiva as crianças hadzas a ir à escola primária da região.
As crianças em idade escolar dizem que não têm interesse em se sentar numa sala de aula. Se forem à escola, explicaram, nunca dominarão as habilidades necessárias à sobrevivência. Serão párias em seu povo. E, se tentarem a sorte no mundo moderno, o que poderá acontecer? As mulheres talvez possam se tornar empregadas domésticas; os homens, trabalhadores braçais. É muito melhor, dizem eles, ser livre e alimentado na mata que pobre e esfomeado na cidade.
Mais hadzas se mudaram para a área hadza tradicional de Mangola, onde, em troca de dinheiro, demonstram sua perícia de caçadores aos turistas. Os hadzas provaram que sua cultura desperta interesse significativo em forasteiros e é uma potencial fonte de renda. Por outro lado, entre os hadzas de Mangola também houve um surto de alcoolismo, outro de tuberculose e um preocupante aumento na violência doméstica.
Embora os jovens tenham pouco interesse pelo mundo exterior, o mundo está vindo até eles. Depois de 2 milhões de anos, a era de caça e coleta terminou. Os hadzas podem aferrar-se a sua língua; mostrar habilidades a turistas. Mas é questão de tempo para que não haja mais hadzas com arco e flechas emboscando babuínos.
No alto do morro para onde Onwas nos conduziu, agacho-me atrás de Maduru enquanto o babuíno se move pela rocha. O babuíno para. Gira a cabeça. Ele está tão perto que, se eu e ele estendêssemos o braço, faríamos contato. Fito seus olhos. Isso dura talvez um segundo. Maduru não dispara a flecha. O animal está demasiado próximo e poderia atacar se fosse ferido - normalmente o que mata é o veneno, não a flecha. Um instante depois, o babuíno volta ao mato.
Faz-se silêncio por duas batidas do coração. Ouço ganidos frenéticos e barulho de queda. Vêm do outro lado da rocha, e não sei se são de gente ou de babuíno. São de ambos. Avançamos aos arrancos pelo mato e chegamos a uma clareira.
E lá está ele: o babuíno. Caído de costas, boca aberta, membros esparramados. Morto por Giga. Onwas ajoelha-se, puxa a seta do ombro do babuíno e a devolve a Giga. Os homens circundam o animal, examinando a caça. Não há cerimônia. Não há nenhuma crença em vida após a morte. Não existem curandeiros nem xamãs.
O mais importante ritual é a dança epeme, nas noites sem lua. Homens e mulheres dividem-se em grupos distintos. As mulheres cantam enquanto os homens, um por vez, põem um cocar de plumas, amarram sinos nos tornozelos e saem desfilando e batendo o pé direito no ritmo do canto. Eles supõem que, nessas noites, ancestrais saem da mata e se juntam ao canto e à dança.
Giga pega o babuíno por uma pata traseira e arrasta o animal pelo mato. O bicho é deposto ao pé da fogueira de Onwas enquanto Giga se senta com os outros homens. É costume o caçador que abateu a presa não se exibir. Na caça há muito de sorte, e mesmo os melhores passam por períodos de insucesso. Por isso é que os hadzas partilham a carne com toda a comunidade.
A mulher de Onwas, Mille, é a primeira a acordar. Veste suas únicas roupas, uma camiseta sem mangas e um tecido florido enrolado no corpo como toga. Vê o babuíno e, com discreta demonstração de contentamento, vai alimentar o fogo. É hora de fazer comida. O resto do grupo está de pé - faminto. Ngaola esfola o babuíno e estica a pele. Em poucos dias ela secará e dará uma boa esteira. Dois homens trincham o animal, e pedaços são distribuídos. Onwas, o ancião, recebe a iguaria: a cabeça.
A culinária é carne no fogo. Hora da refeição não é ocasião para boas maneiras. Assim que a carne fica pronta, qualquer um pode arrebatar um pedaço. E não é modo de dizer. Carne pronta, facas são desembainhadas e o frenesi começa: agarra, fatia, puxa. A ideia é prender um naco nos dentes e usar a faca para cortá-lo. Esmagam ossos e sugam a medula. Passam gordura no rosto como hidratante. O estalar de lábios e o rilhar de dentes fazem uma barulheira quase cômica.
Onwas, com a cabeça, está livre da refrega. Sentado de pernas cruzadas diante da sua fogueira, ele come as bochechas, os olhos, a carne do pescoço, a pele da testa. Rói toda a carne, deixando apenas a caixa craniana, que atira ao fogo. Depois me chama, e aos caçadores, para fumar.
Com o crânio do babuíno ainda no fogo, Onwas põe-se de pé, bate palmas e começa a falar. É uma história de caçada de girafa. Sei disso apesar de Mariamu, minha intérprete, não estar a meu lado. Os hadzas representam suas histórias. Não há televisão nem jogos de tabuleiro. Mas há entretenimento. As mulheres cantam. E os homens contam histórias ao pé da fogueira.
Onwas espicha o pescoço e anda de quatro quando simula a girafa. Pula, agacha-se e faz que atira com um arco quando ilustra o papel dele próprio. Flechas zunem. Feras rugem. Crianças correm para perto da fogueira para ouvir: é a escola delas. A história termina com uma girafa morta - e, no finale, uma pergunta e uma resposta.
"Sou um homem?", indaga Onwas, estendendo as mãos. "Sim!", grita o grupo. "Você é um homem." "Sou um homem?", Onwas pergunta mais alto. "Sim!", o grupo responde, também mais alto. "Você é um homem!"
Onwas pega o crânio no fogo. Abre-o com um golpe, deixando à mostra o cérebro, que ficara cozinhando dentro dos ossos. Parece macarrão. Onwas oferece-nos o crânio, e os homens, eu inclusive, avançamos, metemos os dedos lá dentro, pegamos um punhado de miolos e o sugamos.
Certas coisas eu invejo nos hadzas - principalmente a liberdade. Livres de posses. Livres dos rigores da religião. Livres de horários, emprego, chefe. Livres para arrotar e soltar gases sem se desculpar, para agarrar a comida, fumar e correr sem camisa em meio a espinheiros.
Mas eu jamais poderia viver como os hadzas. A vida deles inteira, de meu ponto de vista, é arriscada. Assistência médica, só muito distante. Uma queda de árvore, uma picada de mamba-negra, e o sujeito está morto. As mulheres dão à luz agachadas no mato. Um quinto dos bebês morre antes de completar 1 ano, e quase metade das crianças não sobrevive até os 15 anos. Eles têm de suportar calor, sede e enxames de mosca tsé-tsé e mosquitos transmissores de malária.
Os dias em que passei com os hadzas alteraram minha percepção do mundo. Incutiram-me uma coisa que chamo de “efeito hadza”: fiquei mais calmo, mais sintonizado com o momento, mais autossuficiente, um pouquinho mais corajoso e menos apressado. Não ligo se parecer pieguice: meu tempo com os hadzas me fez mais feliz. Fez-me desejar que houvesse algum modo de prolongar o reinado dos caçadores-coletores, mesmo sabendo que é tarde demais.
Fonte: National Geographic
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