Médicos relatam casos de pessoas que acreditam que suas vidas são programas de tevê mostrados ao mundo
Não é de todo absurdo supor que há alguém observando o que você faz por alguns instantes, em face da multiplicação das câmeras de segurança instaladas em portarias de edifícios, elevadores, estabelecimentos comerciais e ruas. Essa é uma das características do modo de vida atual. Mas pesquisadores começam a diagnosticar uma espécie de novo delírio paranóico que reúne todos esses ingredientes sob o diapasão de um forte sentimento de perseguição. Estão surgindo relatos de casos de indivíduos que acreditam que suas vidas estão sendo gravadas e exibidas para o mundo, como se eles fossem estrelas de um reality show.
O problema está sendo chamado de síndrome de Truman. Trata-se de uma referência ao filme O show de Truman, de 1998, em que o ator Jim Carrey interpreta Truman Burbank, um americano que leva uma vida comum em uma pequena cidade litorânea até descobrir que seus parentes, vizinhos e colegas de trabalho são atores e que sua vida perfeita é, na verdade, um reality show transmitido em tempo integral desde o seu nascimento. A partir daí, tem início sua luta para escapulir das câmeras onipresentes.
O assunto começou a chamar a atenção dos médicos desde que a revista British Journal of Psychiatry publicou um artigo descrevendo o caso de um carteiro de 26 anos que tinha um vago sentimento de que todos ao seu redor, colegas, parentes e desconhecidos, estavam representando papéis, como atores, e de que o foco da ação era ele, por um motivo que desconhecia. Além deste relato, os irmãos Ian e Joel Gold, respectivamente um psicólogo do Canadá e um psiquiatra dos Estados Unidos, identificaram mais quatro indivíduos com delírios parecidos. Um deles estava convencido de ser secretamente filmado por uma equipe que fazia um reality show sobre sua vida. Os cientistas relatam que esse paciente viajou de outra cidade até Nova York para pedir asilo em um prédio federal porque imaginava que assim conseguiria escapar da equipe que documentava sua existência. Ele também contou aos médicos que queria conferir se as torres gêmeas tinham sido mesmo destruídas em 2001 porque, se ainda estivessem lá, saberia que tudo era realmente parte de um texto sobre sua vida. “A principal característica desses pacientes é acreditarem que são estrelas ou, mais freqüentemente, vítimas de um plano deliberado para registrar ou gravar sua vida e transmitir os dados a outras pessoas”, explicou à ISTOÉ o psiquiatra Joel Gold, que trabalha no Bellevue Hospital Center e ensina na Universidade de Nova York.
Desde que tiveram início os debates sobre a síndrome, novos casos apareceram. “Nos últimos cinco meses, ouvimos falar de 50 pessoas que dizem ter o mesmo tipo de delírio, identificando-se com O show de Truman”, revelou à ISTOÉ Ian Gold, pesquisador nas áreas de filosofia e psicologia da Universidade McGill, em Montreal. Enquanto alguns mostram um certo orgulho por se sentirem na condição de celebridades, outros se confessam incomodados e oprimidos pela invasão da sua privacidade. E ainda que uma parte possa viver anos com essas sensações persecutórias sem ter surtos, a existência dos sintomas pode anunciar outros problemas. O carteiro mencionado no artigo da revista britânica, por exemplo, meses mais tarde manifestou um quadro de esquizofrenia, precisou ser tratado com remédios antipsicóticos e encontra-se afastado do trabalho.
Uma das hipóteses dos Gold para o aparecimento desse tipo de desordem é a forma como a mente humana reúne os fragmentos da cultura para manifestar seu sofrimento. “Acreditamos que as alucinações têm um importante componente social e que tecnologias como a internet e a televisão influenciam a forma como se manifestam”, afirmam. Os delírios descritos nesta síndrome fazem parte de uma categoria conhecida entre os psicanalistas como delírios de influência, que pertencem à grande família das paranóias. “Na paranóia, a pessoa tem raciocínio claro com falsa conclusão, pois constata os dados de uma maneira que sempre chegará ao resultado de que o mundo ou algo conspira contra ela”, explica o psicanalista Jorge Forbes, presidente do Instituto de Psicanálise Lacaniana, em São Paulo.
O problema foi batizado de síndrome de Truman. É uma referência ao filme O show de Truman, no qual a vida de Truman, o protagonista, é exibida para todos
O psicanalista acredita que delírios como a síndrome de Truman devem se manifestar com maior freqüência porque estamos mais vulneráveis às dúvidas sobre a nossa identidade. Uma das razões é a multiplicidade de papéis que a atual sociedade solicita aos indivíduos, mudando e quebrando os padrões estáveis de comportamento até então conhecidos. “Sempre desconfiamos de nós mesmos e vivemos em busca de garantias de quem somos. O filósofo Descartes já se perguntava se estava acordado ou sonhando. Mas, agora que estamos tão sensíveis à perda da identidade, essas formas de expressão de traços paranóicos devem aparecer mais”, diz o psiquiatra.
Fonte: Isto É
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