Processo ainda deve demorar a se consolidar, mas País teria chance ímpar para empregar uma das mais promissoras tecnologias que começam a surgir no mercado.
Há uma mudança de paradigma em curso na indústria automobilística mundial com a necessidade de substituição de veículos movidos a fontes de energia não renováveis e poluentes por outras ambientalmente menos agressivas. Para especialistas ouvidos por
Inovação Unicamp, esse processo ainda deve demorar a se consolidar, mas o Brasil tem uma oportunidade ímpar dentro desse novo cenário para criar uma montadora nacional que empregue uma das mais promissoras tecnologias que começam a surgir no mercado, o carro elétrico. Essa iniciativa seria viabilizada com o aproveitamento da expertise da engenharia automobilística consolidada no País desde a década de 1950, quando começou a produção de carros em solo brasileiro.
Dentro do clube dos países emergentes, que a cada ano ganha mais relevo no cenário econômico mundial, o Brasil é o único que ainda não conta com uma montadora de capital majoritariamente nacional. Há mais de cinco décadas teve início o processo de instalação das indústrias fabricantes de automóveis no Brasil a partir de um projeto do então presidente Juscelino Kubitschek.
Desde então, o País não obteve sucesso com as poucas investidas do setor empresarial nacional para produzir carros e competir com as grandes montadoras estrangeiras.
Caso singular no mundo
"Sendo um produtor de automóveis, com todas as principais marcas instaladas aqui, o Brasil tem uma competência automotiva desenvolvida, mas é o único país relevante que não tem uma indústria própria, com capital próprio ou associado ao externo", explica o professor Mauro Zilbovicius, do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Para ele, isso faz com o que País viva uma situação "sui generis" no mundo automotivo, já que constituiu ao longo das últimas cinco décadas uma grande indústria de autopeças nacional na sua grande maioria.
Zilbovicius pondera, no entanto, que não se trata de levantar uma "discussão nacionalista nos moldes daquela dos anos 50, mas sim de conjugar interesses de oportunidades de investimento". "Há uma conjunção no setor automotivo mundial que define hoje oportunidades para novos players", diz o professor da Poli. "Deve se chamar a atenção de grupos econômicos para essa oportunidade que se abriu neste momento de inflexão tecnológica. Há uma necessidade de soluções para mobilidade urbana, para a qual o automóvel como se conhece não é viável."
Posição de destaque no ranking
O Brasil ocupa a sexta colocação entre os maiores produtores de veículos, tendo produzido 3,6 milhões de unidades em 2010, segundo dados da Associação Nacional de Veículos Automotores (Anfavea) e da Organização Internacional de Construtores de Automóveis (OICA). Em vendas, o País já está em quarto lugar, com 3,5 milhões de unidades. Mas enquanto os países desenvolvidos buscam soluções para substituir o uso dos derivados do petróleo em suas frotas, o Brasil já usufrui de uma tecnologia baseada no desenvolvimento de uma matriz energética renovável com o etanol. De acordo com a Anfavea, de 2003 — quando o carro bicombustível foi lançado comercialmente no Brasil — até 2010, já foram vendidas 12,5 milhões de unidades com esse tipo de motorização. No ano passado, a participação dos veículos com motor flex fuel atingiu a marca de 86%.
Crescimento dos elétricos puros e híbridos
Atualmente, mais de 90% dos veículos do mundo são movidos a gasolina ou diesel, mas essa participação deve cair para uma faixa entre 65% e 85% nos próximos 15 anos, de acordo com um relatório divulgado em março pela empresa de consultoria Roland Berger. O documento "Automotive Landscape 2025" (Panorama automotivo 2025, em tradução livre) prevê que os carros elétricos puros, em compensação, passarão do atual patamar de vendas restrito a nichos para uma fatia que varia de 3% a 12% do mercado em meados da próxima década, estimulados principalmente pela demanda da China, que deverá responder por 31% das vendas totais de veículos leves em 2025. Já os veículos híbridos, que combinam motor de combustão interna e elétrica, deverão representar 40% do mercado. "A crescente fatia global do carro elétrico vai remodelar a atual cadeia de valor da mobilidade em todos os segmentos", destaca o relatório.
Para a Roland Berger, a melhoria nos níveis de emissão dos motores de combustão interna não será suficiente para reduzir a chamada "pegada de carbono" dos países nos próximos anos, e os governos ao redor do mundo já estão se mobilizando para definir políticas que visem metas de redução da emissão de CO2. O relatório destaca que as montadoras "terão de expandir seu portfólio de tecnologias e adicionar a eletrificação aos carros em todas as formas, incluindo os veículos híbridos plug-in e os elétricos puros".
Decisão adiada indefinidamente
Em maio de 2010, ainda na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, o governo brasileiro chegou a marcar a data para o lançamento de um pacote de medidas que incentivariam a produção do carro elétrico no Brasil, mas divergências internas entre os ministérios fizeram com que o anúncio fosse adiado duas vezes por tempo indeterminado. Desde que a presidente Dilma Rousseff tomou posse, em janeiro, sua equipe de governo não deu indícios sobre que rumos seriam tomados nesse setor. Procurado pela reportagem de Inovação Unicamp, o Ministério da Fazenda informou que não poderia se manifestar sobre a realização ou não de estudos referentes ao carro elétrico para não criar expectativas no mercado.
Mauro Zilbovicius, que também é professor da Fundação Vanzolini, concorda que o Estado brasileiro deve interferir nesse processo de transformação da indústria automotiva com instrumentos de política pública, como incentivos fiscais e tributários, e com linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Para o professor da Poli, o ponto fundamental é que, ao se criar uma montadora nacional, o centro de decisões deixa de ser localizado no exterior. "O principal é a questão do centro de decisão local, no planejamento dos negócios, e isso não ocorre só na indústria automobilística. Em todos os estudos sobre multinacionais, a centralidade é a chave para o desenvolvimento do próprio país."
A capacidade da engenharia brasileira, adquirida ao longo das últimas décadas, favoreceria muito a instalação de uma montadora nacional no País. "A possibilidade de ter uma indústria local é muito maior do que foi em outros tempos, porque a engenharia automotiva é hoje a chave da indústria, como a sua capacidade de integrar sistemas em um projeto competitivo", afirma Zilbovicius.
Oportunidade por tempo limitado
A "janela de oportunidade" aberta para o Brasil, no entanto, não deverá durar indefinidamente, pois já há montadoras avançando em suas pesquisas e fabricando no exterior carros elétricos, híbridos ou puros, opina o professor Roberto Marx, coordenador do Laboratório de Estratégias Integradas da Indústria da Mobilidade (MobiLAB), da Escola Politécnica da USP. Além disso, as grandes cidades do mundo estão sofrendo cada vez mais com os problemas da mobilidade e da sustentabilidade e o País não pode ficar para trás nessa corrida, defende Marx. "O Brasil poderia aproveitar melhor suas competências no setor, principalmente com mão de obra, com sua engenharia reconhecidamente competente, e com uma visão de negócios e de produção para viabilizar projetos novos, com fornecimento local", diz Marx.
A aposta no carro elétrico, ressalta Marx, também seria beneficiada pela vantagem que o carro elétrico tem de ser mais "modularizável", diferentemente do carro com motor de combustão interna, que tem um "projeto muito mais integrado". O professor do MobiLAB faz um paralelo entre o carro elétrico e os computadores, cujo projeto "desintegrado" permite que seja montado com distintos fornecedores de peças, como placa-mãe, monitor e disco rígido, sem maiores dificuldades. "O carro elétrico tem muito mais essa característica de ser modularizável. É uma facilidade em relação ao carro de motor de combustão, para se particionar em módulos e adquirir as partes externamente, o que facilitaria para o Brasil."
Modelos de pequeno porte com alta tecnologia
Roberto Marx, que também é professor e consultor da Fundação Vanzolini e do Departamento de Engenharia de Produção da USP, acredita que uma empresa brasileira poderia investir em um carro elétrico pequeno, de menor custo, voltado para a resolução do problema da mobilidade nas grandes cidades. "A minha proposta é de fazer uma coisa diferente da iniciativa indiana de ter um carro de US$ 3 mil para substituir a moto ou a bicicleta. Aqui poderia se pensar mais em algo tecnologicamente avançado, mas ainda assim barato e focado nos grandes centros urbanos."
A competência adquirida pela engenharia brasileira no setor automotivo já foi comprovada, por exemplo, nos modelos Meriva, lançado em 2002 pela General Motors (GM), e Fox, lançado em 2003 pela Volkswagen (VW). Os dois foram os primeiros criados a partir de projetos liderados pelo Brasil para os mercados nacional e europeu. "Competência e engenheiros nós temos", afirma Marx. Para ele, o fato de o País possuir uma montadora de capital nacional, mesmo em um setor tão globalizado, seria benéfico por permitir um poder maior de decisão sobre as características do carro e sobre o fornecimento das peças. "Quando a decisão é feita majoritariamente no Brasil, há uma diferença nítida de caracterização do produto."
Marx e Zilbovicius consideram que o Brasil supera países emergentes como a China e a Índia em competência de engenharia automotiva e que muitas empresas desses países também buscam competência em outros lugares do mundo, como o design importado de empresas da Itália pelos coreanos. "O Brasil acumulou muito mais conhecimento para desenvolver automóveis do que a Índia", diz Marx.
Barreiras para entrada na disputa global
Mesmo que um grupo empresarial brasileiro tivesse fôlego e resolvesse investir no projeto de criar uma montadora nacional, as barreiras para a entrada nessa indústria global são altas, já que o carro é um produto de consumo que não implica em know-how apenas de engenharia e produto, defende o professor Ruy Quadros, do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "As questões de marketing, distribuição e manutenção são bastante complexas. E eu tenho dúvidas se nós temos que pegar dinheiro público para montar esse negócio", questiona Quadros.
Segundo Quadros, não faz sentido investir um montante tão grande de recursos para criar uma montadora que ocupe um espaço restrito do mercado; para ele, também não bastará apenas o mercado interno para manter o negócio. O professor da Unicamp justifica sua posição dizendo que as montadoras estão entre as empresas que mais investem em P&D no mundo atualmente. "Hoje, os modelos são feitos para serem amortizados em nível global."
Apesar de proporcionarem uma melhor eficiência energética, possuírem baixo custo por quilômetro rodado e reduzirem expressivamente a emissão de CO2, os carros elétricos ainda têm baixa autonomia, alto custo de aquisição, requerem muito tempo para carregamento das baterias e exigem a adaptação da rede elétrica para abastecimento.
Negociação em curso
Em março, em entrevista ao jornal The Wall Street Journal, o empresário Eike Batista, do grupo EBX, afirmou que deve anunciar em junho ou julho um acordo com uma montadora japonesa ou europeia para construir uma fábrica de veículos no Porto do Açu, um complexo que está sendo criado pela EBX no norte do Estado do Rio de Janeiro. Procurado pela reportagem de Inovação Unicamp, o Grupo EBX confirmou que "várias montadoras estão em contato com o grupo, interessadas em instalar unidade de produção no complexo industrial do SuperPorto do Açu".
A assessoria de imprensa da EBX informou que 70 memorandos de entendimento já foram assinados com empresas de diversos setores interessadas em se instalar no Porto do Açu. O grupo, entretanto, não quis dar detalhes sobre a negociação com o setor automotivo, nem sobre os planos da empresa de investir na tecnologia do carro elétrico, seja por iniciativa própria ou em parceria com grupos do exterior.
Fonte:
Inova.Unicamp