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terça-feira, 30 de março de 2010

Espíritos na areia

As milenares linhas de Nasca, no Peru, revelam seus segredos

Espíritos na areia
Figuras no desértico solo da costa meridional do Peru - aranha, macaco, um estranho animal voador - fascinam quem sobrevoa o local desde que foram descobertas, nos anos 1920.

Do avião as linhas traçadas no solo são difíceis de ver, esmaecidas como desenhos deixados ao sol. Quando o piloto faz curvas sobre um platô desértico no sul do Peru ao norte da cidade de Nasca, mal consigo discernir uma sucessão de figuras primorosamente traçadas.

"Orca!", avisa Johny Isla, arqueólogo peruano, gritando por causa do barulho do motor. Aponta lá embaixo a forma da baleia assassina. "Mono!", diz logo depois, quando o famoso macaco de Nasca fica visível. "Colibri!", o beija-flor.

Desde que se tornaram conhecidos no mundo todo, em fins dos anos 1920, com o advento da aviação comercial entre Lima e a cidade peruana meridional de Arequipa, os misteriosos desenhos no deserto chamados de linhas de Nasca intrigam arqueólogos, antropólogos e qualquer pessoa fascinada pelas antigas culturas das Américas. Daí em diante, ondas de cientistas - e de leigos - arriscaram diversas interpretações dessas linhas. Dentre as várias explicações, já disseram que são antigas estradas incas, projetos de irrigação, imagens para ser vistas de primitivos balões de ar quente e o mais cômico: pistas de pouso para naves extraterrestres.

Depois da Segunda Guerra Mundial, uma professora nascida na Alemanha, Maria Reiche, fez os primeiros levantamentos topográficos das linhas e figuras, chamadas geoglifos, nos arredores de Nasca e da cidade vizinha de Palpa. Por meio século, até sua morte, em 1998, Maria Reiche teve um papel crucial na conservação dos geoglifos. Mas sua teoria preferida, a de que as linhas eram configurações de um calendário astronômico, também está praticamente desacreditada. A mesma ferocidade com que essa professora protegeu as linhas dos intrusos é vista nos que hoje zelam por elas. Por isso até os cientistas têm dificuldade de acesso às mais famosas figuras de animais na planície, ou pampa, na orla noroeste de Nasca.

Desde 1997, porém, uma área mais ao norte, nas imediações da cidade de Palpa, vem sendo analisada por um projeto peruano-alemão. Dirigido por Isla e por Markus Reindel, do Instituto Arqueológico Alemão, o Projeto Nasca-Palpa é um estudo multidisciplinar sobre o antigo povo da região que pretende descobrir, para começar, onde e como os nascas viviam, por que desapareceram e qual era o significado dos desenhos que eles deixaram nas areias do deserto.

O avião inclina-se noutra curva, e Isla, um nativo do planalto que trabalha no Instituto Andino de Estudos Arqueológicos, não desgruda o rosto largo de maçãs salientes da janela. "Trapézio!", grita ele, apontando uma imensa clareira geométrica que começa a aparecer. "Plataforma!", acrescenta, gesticulando com o dedo.

Plataforma? O que ele aponta é uma pequena pilha de rochas numa ponta do trapézio. Se Isla e seus colegas estiverem corretos, essas estruturas podem ser a chave do verdadeiro propósito das linhas de Nasca. A história começa e termina com água.

A região costeira do sul do Peru e norte do Chile é um dos lugares mais secos do planeta. Na protegida bacia em que surgiu a cultura nasca, dez rios desciam dos Andes, a leste, e a maioria secava por boa parte do ano. Essas dez frágeis linhas verdes cercadas por mil matizes de marrom eram um fértil viveiro para a emergência de uma civilização antiga, como foram também o delta do Nilo e os rios da Mesopotâmia. "Era um lugar perfeito para seres humanos povoarem, pois tinha água", diz o geógrafo Bernhard Eitel, do Projeto Nasca-Palpa. "Mas era um ambiente de alto risco - um meio de altíssimo risco."

Eitel e seu colega Bertil Mächtle, da Universidade de Heidelberg, dizem que nos últimos 5 mil anos o microclima da região de Nasca sofreu grandes oscilações. Quando um sistema de alta pressão sobre a América do Sul chamado "alta da Bolívia" se desloca para o norte, chove mais nas encostas ocidentais da cordilheira dos Andes. Quando a alta vai para o sul, a precipitação diminui e os rios nos vales de Nasca secam.

Apesar das condições de risco, o povo de Nasca floresceu por oito séculos. Por volta de 200 a.C., os nascas emergiram de uma cultura anterior conhecida como paracas. Fixaram-se nos vales fluviais e lá cultivaram vegetais, como algodão, feijão, tubérculos, lucuma (uma fruta) e um tipo de milho de espiga curta. Célebres por sua cerâmica, inventaram uma técnica que misturava mais de dez pigmentos minerais em argila diluída para fixar as cores pelo calor. Um famoso quadro em cerâmica conhecido como Placa de Tello mostra vários nascas em passeio tocando antara (flauta de Pã) e rodeados de cachorros dançantes. Essa tornou-se uma imagem icônica de um povo pacífico cujos rituais continham música, dança e caminhadas sagradas.

A capital teocrática da Nasca primitiva era Cahuachi, uma meca varrida pela areia. O sítio, escavado pela primeira vez nos anos 1950 por William Duncan Strong, arqueólogo da Universidade Columbia, é um vasto complexo de 150 hectares com uma imponente pirâmide de adobe, vários templos grandes, praças e plataformas amplas e uma intricada rede de escadarias e corredores ligando tudo. Em seu livro de 2003 sobre os sistemas de irrigação de Nasca, Katharina Schreiber, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, e Josué Lancho Rojas, professor e historiador da região, salientam que o rio Nasca, que corre no subsolo por cerca de 15 quilômetros a leste, reemerge como um manancial às portas de Cahuachi. "O fato de a água minar naquele trecho era, quase certamente, visto como algo sagrado nos tempos pré-históricos", escreveram Katharina e Rojas.

"Cahuachi era um centro cerimonial", diz o italiano Giuseppe Orefici, arqueólogo que há anos chefia as escavações. "Vinha gente das montanhas e da costa trazer oferendas." Entre os artefatos descobertos estão dezenas de cabeças, em geral com um orifício perfurado na testa por onde passa uma corda trançada, talvez para permitir que o crânio fosse atado à cintura.

Em outras partes do reino nasca os habitantes se deslocavam para leste ou oeste ao longo dos vales fluviais conforme mudavam os padrões das chuvas. A iniciativa arqueológica peruana-alemã explora a região desde a costa do Pacífico até altitudes que beiram os 4,6 mil metros no planalto andino. Em quase todos os lugares estudados foram encontrados indícios de povoações nascas, "como pérolas nas margens dos vales", comenta Reindel. "E nas proximidades de quase todas as povoações encontramos geoglifos."

O deserto e as encostas de montes dão uma tela convidativa: removendo apenas uma camada de pedras escuras que junca o solo para deixar à mostra a areia de baixo, os nascas criaram traçados que perduraram por séculos. Os arqueólogos supõem que a feitura e a manutenção das linhas fossem atividades comunitárias, "como a construção de uma catedral", diz Reindel.

Nos áridos vales do sul, os primeiros engenheiros nascas talvez também tenham concebido algum modo mais prático de lidar com a escassez de água. Um engenhoso sistema de poços horizontais abastecidos com o líquido que desce dos contrafortes andinos permitia às povoações trazer a água subterrânea à superfície. Conhecidos como puquios, esses sistemas de irrigação ainda abastecem os vales meridionais.

Talvez por causa das adversidades que enfrentava, o povo nasca parece ter sido notavelmente "ecológico". A construção dos puquios indica noções refinadas sobre a conservação de água, pois os aquedutos subterrâneos minimizavam a evaporação. Os agricultores plantavam sementes fazendo um único buraco no chão, em vez de arar o solo, preservando assim sua subestrutura. Durante uma visita ao sítio La Muña, Isla mostrou-me camadas de matéria vegetal nas paredes das construções e nos terraços que marcavam o povoado na encosta rochosa. Os nascas, diz Isla, reciclavam seu lixo, transformando-o em material de construção. "Era uma sociedade que administrava bem seus recursos", conclui. "Essa é a principal característica de Nasca."

Muitos hoje acham que são as linhas. Mas, embora os nascas talvez sejam os mais prolíficos criadores de geoglifos, eles não foram os primeiros. Em uma encosta pegada a um platô ao sul de Palpa esparramam-se três figuras humanas estilizadas, de olhos esbugalhados e bizarro cabelo raiado. Os arqueólogos dizem que eles são de no mínimo 2,4 mil anos atrás - mais antigas que as datas que quase todos os livros didáticos indicam para o nascimento da civilização nasca. A equipe de Reindel atribuiu nada menos que 75 grupos de geoglifos na área de Palpa a uma cultura anterior, os paracas. Por sua vez, os geoglifos dos paracas, em geral retratando figuras humanoides estilizadas, têm motivos visuais em comum com as imagens ainda mais antigas esculpidas em rocha, os chamados petroglifos. Durante uma caminhada para fazer o levantamento de um sítio no vale do rio Palpa que os arqueólogos suspeitavam ter sido habitado pelos paracas, Isla encontrou um petroglifo retratando um macaco: uma surpreendente encarnação anterior do famoso geoglifo de Nasca que, do avião, ele me mostrara lá embaixo no pampa.

Esses novos achados trazem uma informação importante sobre as linhas: elas não foram feitas em uma única época, em um só lugar e com apenas um propósito. Muitas foram traçadas por cima de outras, mais antigas, com emendas e sobreposições que complicam sua interpretação; a arqueóloga Helaine Silverman comparou-as a um quadro-negro todo riscado no fim de um movimentado dia de aula. A ideia de que eles só podem ser vistos do ar é um mito moderno. Os primeiros geoglifos da era paracas foram traçados em encostas de onde podiam ser vistos por quem estivesse no pampa. No começo da era nasca, as imagens, menos antropomórficas, mais naturalistas, eles haviam migrado das encostas próximas para o solo do pampa. Quase todas essas figuras de animais icônicas, como a aranha e o beija-flor, eram desenhadas com uma única linha; quem as percorresse por inteiro, começando por um ponto qualquer, terminaria no outro extremo sem cruzar nenhuma linha. Por isso, os arqueólogos supõem que em algum momento no começo da cultura nasca as linhas evoluíram de meras imagens para rotas de procissões cerimoniais. Mais tarde, possivelmente em resposta ao explosivo crescimento da população documentado pela equipe alemã-peruana, mais pessoas talvez participassem desses rituais, e os geoglifos adquiriram padrões geométricos amplos, com algumas figuras trapezoides alcançando mais de 600 metros. "Imaginamos que elas deixaram de ser imagens para ser vistas e passaram a ser estágios a ser percorridos a pé em cerimônias religiosas", analisa Reindel.

Esses rituais antigos deixaram vestígios no próprio solo. Entre 2003 e 2007, os geofísicos Tomasz Gorka e Jörg Fassbinder mediram o campo magnético da Terra em um trapézio próximo a Yunama, um vilarejo nas cercanias de Palpa, e em outras linhas vizinhas. Discretas perturbações no sinal magnético indicaram que o solo fora compactado por atividade humana, especialmente ao redor das plataformas. Nesse meio tempo, Karsten Lambers, outro membro do Projeto Nasca-Palpa, coligiu dados posicionais e fez medições precisas das linhas de visão para centenas de geoglifos. Os dados mostraram que os trapézios e outras formas geométricas foram construídos onde pudessem ser vistos de vários pontos. A equipe concluiu que eram lugares em que "grupos sociais agiam e interagiam e aos quais espectadores, nos vales e em outros sítios com geoglifos, pudessem assistir e observar".

Cerro Blanco, uma das mais altas dunas de areia do mundo, assoma pálida e árida no meio de uma ressequida concavidade nos contrafortes andinos, dominando a paisagem física e espiritual dos vales meridionais de Nasca. Por séculos o povo dos Andes venerou deidades incorporadas em montanhas como Cerro Blanco. Johan Reinhard, explorador da National Geographic Society, diz que tradicionalmente - em mitos, senão na própria geologia -, as montanhas são associadas a recursos hídricos. Os cacos de cerâmica nasca que cobrem a trilha até o topo de Cerro Blanco levam a crer que essa associação vem de um passado remoto.

Em 1986, Reinhard informou ter encontrado ruínas de um círculo de pedra cerimonial no cume da montanha Illakata, de mais de 4,2 mil metros de altura, um dos mais altos montes cujos rios alimentam o sistema de drenagem de Nasca. Esse achado, juntamente com outros vestígios de atividades rituais no alto das vertentes nascas, levou Reinhard a supor que um dos principais objetivos das linhas de Nasca relacionava-se ao culto de deidades das montanhas, entre elas Cerro Blanco, devido a sua ligação com a água.

Estudos recentes reforçaram essa hipótese. Nos altiplanos mais ao norte, em que vicunhas selvagens vagueiam nas cabeceiras do rio Palpa, junto-me a Reindel e seu grupo numa caminhada até o topo de uma montanha sagrada conhecida como Apu Llamoca - na língua nativa, apu significa "deidade". No alto dessa massa escura de rocha vulcânica, Reindel mostra-me um círculo ritual com cacos de cerâmica que o grupo encontrou em 2008 e, ali perto, uma estrutura semicircular quase idêntica à que Reinhard informou ter encontrado em Illakata.

Mas, para os pesquisadores do Projeto Nasca-Palpa, a verdadeira epifania que associou os rituais sagrados de Nasca ao culto da água ocorreu em 2000, no trapézio que domina o desolado platô próximo ao vilarejo de Yunama. Os arqueólogos haviam notado várias pilhas grandes de pedra no extremo desses trapézios e imaginaram que fossem altares cerimoniais. Quando Reindel escavava perto de um desses montes, descobrindo cacos de cerâmica, cascas de lagostim, restos vegetais e outras relíquias que claramente representavam oferendas rituais, deparou com fragmentos de uma grande concha de um molusco do gênero Spondylus, que se distingue pelos tons coralíneos e por sua superfície espinhenta. Ele aparece nas águas litorâneas ao norte do Peru apenas durante eventos climáticos ligados ao fenômeno El Niño, e por isso é associado à chegada das chuvas e da fertilidade agrícola.

"A concha do Spondylus é um dos poucos elementos bem estudados da arqueologia andina", diz Reindel. "Ela é um símbolo religioso muito importante da água e da fertilidade. Como o incenso no Velho Mundo, foi trazida de longe e é encontrada em contextos específicos, como objetos funerários e nestas plataformas. Relacionava-se em certas atividades às preces que suplicavam por água. E é evidente", acrescenta ele, "que nesta região a água era o principal problema."

Mas, no fim das contas, todas as oferendas e preces foram em vão. Em 2004, em um sítio próximo ao ressequido rio Aja chamado de La Tiza, na parte meridional de Nasca, a arqueóloga Christina Conlee fez uma lúgubre descoberta quando escavava uma tumba nasca. Foi uma cena chocante. A primeira parte do esqueleto que emergiu da terra não foi o crânio, mas os ossos do pescoço. "Dava para ver as vértebras na parte de cima", diz ela. A pessoa estava sentada, de braços e pernas cruzados, sem a cabeça."

Marcas de corte nos ossos protuberantes do pescoço indicavam que a cabeça fora decepada de forma violenta por uma afiada faca de obsidiana. Reforçando essa ideia, encostado no cotovelo do esqueleto havia um pote de cerâmica conhecido como jarro de cabeça; nele estava retratado um "troféu de cabeça" decapitada, da qual saía um sinistro tronco de árvore com olhos - mais parecendo um artefato de Halloween. Donald Proulx, especialista em cerâmica nasca e professor da Universidade de Massachusetts, em Amherst, diz que o estilo do jarro sugere alguma data entre os anos de 325 e 450.

Tudo naquele sepultamento - a postura do esqueleto, o jarro de cabeça - indica um confinamento deliberado e respeitoso. "Ninguém faz assim com um inimigo", comenta Christina Conlee, pesquisadora da Universidade do Texas. A análise isotópica dos ossos do jovem deixa claro que ele vivia nas imediações. Portanto, era gente do lugar, não um inimigo estrangeiro capturado numa guerra. Christina desconfia de que o esqueleto represente um sacrifício ritual. "Embora encontremos troféus de cabeça espalhados por todo o período nasca", explica ela, "temos alguns indícios de que se tornaram mais comuns a partir de meados desse período e também em épocas de flagelos ambientais, como a seca. Se esse foi um sacrifício, seu objetivo terá sido apaziguar os deuses, quem sabe por causa de alguma seca ou colheita arruinada."

Não há dúvida de que a água, ou melhor, a ausência dela, assumira importância suprema nos últimos tempos da cultura nasca, entre os anos de 500 e 600. Na área de Palpa, os geofísicos identificaram o lento avanço da margem oriental do deserto por cerca de 20 quilômetros vale acima entre 200 a.C. e 600 d.C., chegando a 2 mil metros de altitude. Os centros populacionais nos oásis ribeirinhos próximos a Palpa também foram se mudando para áreas mais altas do vale, como se tentassem cada vez mais fugir da aridez mortal da região. No fim do século 6, concluíram Eitel e Mächtle em um artigo recente, "a aridez chegou ao auge, e a sociedade nasca enfim sucumbiu." Em 650, o Império Wari, mais militarista, já se expandira a partir de sua base no centro do planalto e suplantara os nascas no platô desértico sul.

"Não foram apenas as condições climáticas que acarretaram o colapso da cultura nasca, e não só em Cahuachi", argumenta Johny Isla. "Um estado de crise foi provocado porque a água preponderava mais em certos vales do que em outros, e os diferentes líderes dessas áreas talvez tenham entrado em conflito por causa dela."

O legado do povo nasca vive nas linhas, é claro, e, embora a maioria das pessoas venha para admirá-las do alto, o que vejo e ouço me convence de que só podemos entender realmente os geoglifos se os virmos do solo. Em uma conversa com Isla, ele me descreve a sensação de caminhar por essas trilhas sagradas. "Dá para sentir", diz ele. E eu, curioso para saber o que é que se sente, peço para andar em várias linhas na Cresta de Sacramento, uma pequena serrania ao norte da cidade de Palpa.

Vou encontrá-lo ao amanhecer de um dia de inverno em agosto. A neblina flutua no vale lá embaixo, e o sol ainda não escapou sobre os contrafortes andinos a leste. Começamos a percorrer um grande trapézio no chão do platô desértico, e Isla me alerta para pisar com cautela e cuidar daquela paisagem sagrada como faria um zelador de campo de golfe: se ao andar eu tirasse alguma pedra do lugar, deveria arrumá-la de volta no chão. Após vários minutos naquela curiosa caminhada na ponta dos pés, estamos na direção de um antigo espiral: outra forma comum nos geoglifos de Nasca.

Conforme seguimos pela espiral, meus pés me põem face a face com cada ponto cardeal daquela paisagem: o vale de Palpa ao sul, os montes costeiros a oeste, a "montanha sagrada" (Cerro Pinchango) ao norte e, a leste, os contrafortes dos Andes com seu poder de, como uma divindade, alimentar os frágeis rios que serpenteiam pelo desaguadouro de Nasca, irrigando as sementes de civilização no meio de toda aquela aridez. Se eu houvesse pisado no vórtice daquele itinerário curvilíneo em tempos remotos, também teria sido forçado a encarar outros devotos que estivessem percorrendo a trilha. Percebi, então, que uma caminhada devocional dos nascas também podia reforçar as relações sociais.

"Olhe!", exclama Isla. O sol então aparece por detrás das montanhas, e a oblíqua luz da manhã projeta nossas sombras alongadas sobre o geoglifo. A espiral paira algo acima da paisagem, com seu perímetro de pedras empilhadas.

Prosseguindo em meus passos pelas curvas da espiral, me dou conta de que uma das mais importantes funções das "misteriosas" linhas de Nasca não tem mistério algum. Os geoglifos decerto tinham por finalidade lembrar ao povo de Nasca, pelo movimento ritualístico, de que o destino deles estava ligado a seu meio - àquela beleza natural, sua efêmera abundância e sua ameaçadora austeridade. Podemos sentir a reverência pela natureza, em tempos de fartura e de escassez desesperadora, em cada linha e em cada curva que eles entalharam no chão do deserto. Quando nossos pés ocupam esse espaço sagrado, mesmo por um breve momento que nos torna humildes, podemos sentir isso.

Fonte: viajeaqui.abril.com.br

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