Microfinanças: Flory será o responsável pela filial brasileira do Grameen Bank, instituição especializada em empréstimos para empreendedores de baixa renda
Repare na primeira foto que ilustra esta reportagem. O sujeito de calça jeans que aparece ao lado de uma pichação é Henrique Flory, presidente de um banco que nos próximos meses abrirá suas portas no Brasil. O executivo está no Itaim Paulista, bairro localizado no extremo leste de São Paulo - é a periferia da cidade. Ele não foi ao Itaim por acaso. Flory está atrás de negócios. Em vez de percorrer as regiões nobres da capital paulista, ele prefere as zonas afastadas. Sua empresa, o Grameen Bank, quer atrair a clientela que não está acostumada a entrar numa agência tradicional. Fundado pelo bengalês Muhammad Yunus, prêmio Nobel da Paz por ter criado o chamado "banco dos pobres", o Grameen está de olho na camada da população classificada pelos especialistas como classe D. Um contingente formado por 64 milhões de brasileiros que têm renda mensal familiar entre um e três salários mínimos. Até aí, nenhuma novidade. O que surpreende - e que era desconhecido até agora - é o volume de dinheiro que esse universo dispõe para consumir bens e serviços. Segundo um estudo feito com exclusividade para a DINHEIRO pela consultoria Data Popular, especializada no mercado de baixa renda, em 2010 os integrantes da classe D vão gastar R$ 381,2 bilhões. É dinheiro grosso, que representa mais do que o valor disponível para o consumo na classe A (R$ 216,1 bilhões) e na classe B (R$ 329,5 bilhões). A conta é simples. Como são em maior número, os membros da classe D geram maior escala financeira.
Com o aumento da oferta de crédito, essa turma, que até pouco tempo atrás vivia à margem do sedutor mundo do consumo, finalmente foi às compras. Muitas empresas ainda não colocaram esse contingente em seu radar porque estavam focadas na classe C. Mas quem quiser apostar no futuro tem de se apressar e seguir os passos daqueles que já descobriram a classe D.
O fenômeno da classe D é resultado de uma impressionante transformação social do País. Nos últimos anos, mais de 19 milhões de brasileiros deixaram a linha da pobreza para ingressar na nova classe emergente. "São pessoas ansiosas por fazer parte do mercado de consumo", diz Renato Meirelles, que coordenou o trabalho da Data Popular (leia entrevista à pág. 43). Para comprar bens, elas precisam de crédito. É aí que o Gremeen Bank entra. "Até 2010, esperamos ter oferecido empréstimos a 80 mil famílias", diz Flory, o presidente do banco. Segundo ele, a instituição, que começa a funcionar oficialmente em junho, vai liberar valores que variam de R$ 300 a R$ 1,5 mil. Para pegar o dinheiro, o interessado sequer precisa comprovar renda, um dos entraves que impedem a bancarização da classe D. Segundo o estudo da Data Popular, que fez também uma mapeamento completo desse público (leia quadros ao longo desta reportagem), 51% dos brasileiros da classe D trabalham na informalidade.
Eles não têm holerite, mas às vezes têm mais dinheiro do que os colegas com carteira assinada.
O primeiro banco privado a descobrir as classes menos abastadas foi o Bradesco. Nos anos 50, Amador Aguiar, um de seus fundadores, tomou uma decisão ousada. Naquela época, apenas os "bacanas", como eram chamadas as pessoas com dinheiro, tinham acesso aos gerentes de banco, que ficavam como que escondidos em salas no fundo da agência. Em Marília, no interior de São Paulo, Aguiar trouxe os funcionários para a frente do banco. Sua ideia era fazer com que os gerentes estivessem acessíveis. Uma medida simples assim foi o estopim para transformar o Bradesco na instituição financeira privada mais popular do Brasil.
Meio século depois, a instituição decidiu reforçar sua presença junto a esse universo. Para atrair os integrantes da classe D, reduziu a exigência cadastral. "Eliminamos a comprovação de renda e o valor mínimo de depósito para os correntistas", diz Odair Afonso Rebelato, diretor-executivo do Bradesco e responsável pela área de contas populares da instituição. Segundo o executivo, o banco também lançou um pacote de tarifas mais em conta.
Afinal, esse cliente dá lucro? Rebelato diz que sim. De um total de 21 milhões de clientes do Bradesco, 37% são da classe D. É esse grupo que alavanca alguns produtos como a carteira de empréstimo pessoal, feito diretamente no caixa eletrônico.
Hoje existem 5,5 milhões de correntistas com empréstimos de até R$ 500. "Os bancos que não apostarem na classe D vão ficar de fora do segmento que deve puxar o crescimento do País nos próximos anos", aposta o executivo. O Bradesco está disposto mesmo a não perder essa corrida. Em junho passado, comprou, por R$ 1,4 bilhão, o banco Ibi, que opera a carteira de produtos financeiros de 15 redes varejistas como a C&A e o Makro Atacadista. A aquisição do Ibi permitiu ao Bradesco o acesso a uma carteira composta de 22 milhões de clientes, dos quais 70% têm renda de um salário-mínimo. Boa parte deles jamais teve conta em banco ou uma poupança. Mas nem por isso podem ser vistos como alijados do sistema financeiro. "Os clientes, mesmo em comunidades periféricas como Heliópolis, em São Paulo, e Rocinha, no Rio de Janeiro, exigem serviços similares aos dos clientes abonados", diz.
Um dos dados mais interessantes revelados pelo estudo da Data Popular diz respeito à importância que a autoestima tem para as pessoas que fazem parte da classe D. Ela quer receber no banco o mesmo tratamento que seu colega mais rico recebe num bairro nobre. É por isso também que ela gasta às vezes até mais do que pode - e do que precisa - para adquirir produtos caros e exibi-los aos familiares, aos vizinhos, aos colegas de trabalho. Se para a classe média ter uma televisão de plasma é algo banal, para quem está mais embaixo na pirâmide significa um sinal claro de ascensão social. Moradora do Jardim São Luís, região carente da zona sul de São Paulo, a cabeleireira Altina Cristina dos Santos, de 35 anos, viu seu padrão de vida subir na medida em que crescia a renda média e a vaidade da vizinhança. Depois de ter largado o emprego de auxiliar de escritório para cuidar dos filhos - são quatro com idade entre 7 e 19 anos - ela fez um curso de cabeleireira e montou um pequeno salão em um dos cômodos da casa. É com o rendimento médio mensal de R$ 600 que ela banca os sonhos da família. O dinheiro do marido, José Salvador, é reservado para as contas do mês e a alimentação. A lista de desejos atendidos inclui uma tevê de plasma de 52 polegadas e um computador, recém-adquirido para a filha Jenifer, de 14 anos. Para fazer render o orçamento, Altina exerce um controle espartano sobre os gastos. Não empresta nenhum de seus três cartões de crédito, um deles com limite de R$ 12 mil, contrariando uma prática comum entre as pessoas de baixa renda. Altina dá preferência às lojas que cobram o mesmo valor à vista e a prazo. "A taxa de juros é muito elevada e a gente acaba pagando duas mercadorias para levar uma", justifica. Mais que o preço, o que determina a escolha da marca é a qualidade, aferida por meio da indicação de vizinhos ou pelo porte do fabricante. Isso lhe dá a sensação de que, em caso de problemas, não haverá dificuldade para achar uma assistência técnica ou trocar o produto.
Os dados confirmam a força consumidora da Classe D e seu desejo de comprar todo tipo de produto, desde itens frugais como sucos prontos, detergentes líquidos, cremes para cabelo e amaciantes de roupas, até artigos sofisticados, como telefone celular, computador e automóvel. Os números impressionam. A classe D vai responder por 33% de todos os computadores que serão vendidos no Brasil em 2010. Há uma lógica na busca obsessiva por esse artigo. Segundo o estudo, os integrantes da classe D fazem planos de longo prazo e valorizam enormemente a educação.. "A maioria dessas famílias é chefiada por mulheres e elas entendem que mandar o filho para a faculdade funciona como um atalho para ampliar a renda", diz Meirelles, da Data Popular. Daí o grande interesse pelo computador. O equipamento é visto como um instrumento capaz de manter as crianças em casa, além de ajudar nas tarefas estudantis.
Disposta a surfar neste fenômeno, a Positivo Informática lançou uma linha de computadores populares, hoje vendidos por R$ 799, incluindo o monitor. Só que as vendas decepcionaram. "Pensávamos que este seria o carro-chefe da marca, mas não foi isso que aconteceu", conta Hélio Rotenberg, presidente do Grupo Positivo. O executivo encomendou uma série de pesquisas para entender o fenômeno. "Esse consumidor busca o equipamento mais sofisticado que a sua renda pode comprar. Ele não quer ser identificado como alguém que compra coisa de pobre." O raciocínio também explica, entre outras coisas, por que a cabeleireira Altina comprou uma tevê de 52 polegadas e não uma de 42 polegadas, o modelo mais vendido do mercado. Para ampliar a participação na faixa baixa da pirâmide social, o Positivo reformulou sua estratégia com duas novas linhas de produtos: o PC Família e o PC TV. Máquinas cheias de recursos e design bonito, mas com tutoriais que ensinam o passo-a-passo do mundo da informática (como abrir uma conta de email, por exemplo). O PC TV tem inclusive placa de captura de vídeo. "Ele funciona como a segunda tevê da família", destaca Rotenberg. Lançar um computador mais sofisticado destinado à baixa renda foi uma decisão acertada.
Essas linhas, cujo preço gira em torno de R$ 1,2 mil, já responde por metade das vendas de PCs da marca.
A emergente classe D tem alterado a estratégia das empresas. Após a privatização, em meados da década de 1990, todas as operadoras de telefonia focaram as atenções nos clientes abonados. Saciado o apetite desse pelotão, que deixou de crescer no ritmo desejado, o jeito foi buscar as outras faixas da pirâmide. A direção da TIM diz que acertou em cheio com a venda de um chip pré-pago que garante ligações para outros clientes da empresa por R$ 0,25, sem limite de tempo. Cada recarga custa a partir de R$ 1. "Esse público tem fome de usar o celular e gosta de falar por tempo ilimitado, mas detesta ter surpresas na hora de pagar a conta", afirma Roger Solé, diretor de marketing de consumidores da TIM. O produto já se tornou um caso de sucesso dentro da companhia. Em seis meses foram comercializados 21 milhões de chips com esse perfil de tarifa, sendo 11 milhões pré-pagos. Essa iniciativa revela que para ser competitivo nessa camada de renda é preciso ter preço e escala de produção. Segundo Fábio Bruggioni, diretor-executivo da Telefônica, a empresa fez uma ampla pesquisa sobre os hábitos de consumo dos integrantes da classe D que culminou na criação de pacotes que oferecem algum tipo de controle ao consumidor: preço fixo ou senha para ligações de longa distância e para celular. Hoje, cerca de 30% dos 11,2 milhões de clientes da operadora dispõe de serviços com algum tipo de controle "Com isso, os clientes podem se planejar melhor", afirma Bruggioni. O mesmo erá feito na Internet. Até o final deste mês começa a funcionar a Banda Larga Popular. A assinatura mensal custará R$ 29,80, quase metade do menor valor cobrado pelo serviço convencional do Speedy.
Na escalada social dos emergentes, nada é tão importante quanto a educação. Segundo a pesquisa, os integrantes da classe D já têm mais representantes nas escolas privadas de ensino fundamental que os do topo da pirâmide. Por isso mesmo, essa área tende a ser rentável para empresas que apostarem nesse filão, como fez a paulistana Eurodata. A escola, que mantém cursos de inglês e de informática, nasceu em 1995, mas descobriu uma forma de ganhar dinheiro de forma mais veloz a partir de 2005, quando direcionou o foco aos emergentes. Seu segredo: preço competitivo e localização estratégica das filiais, em áreas centrais das capitais e bairros periféricos de grande densidade populacional. O alvo são os jovens de baixa renda que esperam dar um salto na vida profissional mesmo sem cursar uma universidade. Atualmente, a rede possui 250 mil alunos - o dobro em relação a 2005. Na Eurodata, a mensalidade custa a partir de R$ 110, incluindo o material didático.
No curso superior também existem opções acessíveis. Na Universidade Nove de Julho (Uninove), de São Paulo, é possível graduar-se como tecnólogo pagando R$ 149 por mês. Nunca foi tão barato ter diploma universitário.
"Quem gosta de minimalismo é rico"
Publicitário com MBA em estratégia de negociação, Renato Meirelles se tornou um especialista em consumidores emergentes. À frente da Data Popular ele faz estudos e pesquisas sobre os hábitos dessa parcela da população
Que conselho o sr. daria para as empresas que desejam conquistar o consumidor da classe D?
O grande desafio é traduzir de forma clara e objetiva as virtudes de cada produto e serviço. Levará vantagem as empresas que souberem criar um canal de comunicação com viés educativo, ajudando esses consumidores a se inserir neste novo universo de produtos e serviços que até então ele não tinha acesso.
Tem algum segredo para tornar a comunicação mais eficiente?
Sem dúvida. Além da clareza, é preciso destacar que esse consumidor gosta de cores fortes e valoriza os símbolos da cultura popular. Quem gosta de minimalismo é rico.
O que motiva esse consumidor a optar por determinado produto ou serviço?
Eles são fiéis às marcas que conseguem se mostrar competitivas em termos de custo e que têm uma boa qualidade. Afinal, seu rendimento médio ainda é baixo e não deixa margem para erros.
Quais setores deverão ser beneficiados neste ano pelo crescimento do consumo da classe D?
Eu aposto naqueles que abrem as portas à ascensão social: informática, educação e produtos de beleza.
No estudo elaborado pela Data Popular para a DINHEIRO, o que mais chamou a atenção?
Foi o fato de a classe D ser a que mais se apropria dos ganhos gerados pelo crescimento do PI B e do aumento do salário mínimo. E isso explica por que esse contingente é mais otimista em relação ao futuro que os demais integrantes da pirâmide social.
Fonte: istoedinheiro
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