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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Os Polígamos

Os Polígamos
Em Hildale, em Utah, Joe Jesseop fez o possível para cumprir a tarefa de construir a "família celestial" com suas cinco esposas, seus 46 filhos e sues 239 netos. "Tive uma vida abençoada", afirma ele.


Os primeiros membros da igreja chegam ao salão paroquial Leroy S. Johnson lá pelas 6 da tarde. Em meia hora a fila se estende para o lado de fora, até o pátio do estacionamento. Em torno das 7 já se prolonga por centenas de metros, somando algo como 5 mil pessoas - homens e garotos de terno, mulheres e garotas envergando vestidos à moda campestre do século 19 de cores claras.

Os participantes se aproximam para velar o corpo de Foneta Jessop, de 68 anos, que morreu de ataque cardíaco dias antes. No monumental salão, os filhos de Foneta se alinham ao pé do caixão aberto para recepcionar as pessoas enquanto seu marido, Merril, se posta na cabeceira. Imediatamente atrás dele, posicionam-se suas numerosas esposas, todas de vestido branco.

Foneta foi a primeira esposa.

Colorado City é uma cidadezinha com especial significado para os que compartilham a fé de Foneta. Junto com a comunidade-irmã de Hildale, no estado de Utah, é o berço da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (FLDS, na sigla em inglês), uma dissidência poligâmica da Igreja Mórmon, ou dos Santos dos Últimos Dias (LDS, em inglês). Nos anos 1920-30, um punhado de famílias poligâmicas se estabeleceu nos dois lados da divisa entre os estados de Utah e Arizona depois que a liderança da Igreja Mórmon se tornou determinada a descartar seu passado poligâmico e buscar a aceitação da sociedade americana.

Em 1935, a igreja deu um ultimato aos residentes do assentamento: ou renunciavam ao casamento plural, ou seriam excomungados. Praticamente todos se recusaram, sendo expulsos da LDS.

Durante o serviço fúnebre para Foneta, o marido e os três filhos dela dão testemunhos exaltando sua fidelidade ao preceito divino do casamento plural. Ninguém nem precisa mencionar a ausência da quarta esposa de Merril, Carolyn Jessop, que abandonou o lar em 2003 com seus oito filhos e escreveu um livro, logo alçado a best-seller, sobre sua vida como membro da FLDS. Carolyn descreve um ambiente de clausura e faz menção à profundamente infeliz Foneta, uma reclusa obesa que caiu em desgraça com o marido e passava os dias dormindo.

Ela só saía do quarto à noite para comer, lavar roupa e assistir a velhos filmes de Shirley Temple na TV - isso até mais ou menos 2003, quando a televisão foi banida da comunidade.

No fim do velório, a maioria dos congregados caminha até o cemitério. Presumo que a enorme afluência de gente - as pessoas vieram das comunidades da FLDS do Texas, do Colorado e da Colúmbia Britânica (no Canadá) - deva-se à proeminente posição do marido de Foneta: Merril Jessop, um dos líderes da FLDS, é o bispo da numerosa assembleia do oeste do Texas.

Todavia, Sam Steed, meu cicerone, um contador de 37 anos e fala mansa, explica que esses funerais esmerados ocorrem com regularidade. "Provavelmente de 15 a 20 vezes por ano", diz ele. "Este aqui talvez seja um pouco maior que a maioria, mas, mesmo quando uma criancinha morre, você pode esperar que 3 mil ou 4 mil pessoas compareçam. Isso é parte daquilo que nos mantém unidos. É um lembrete de que somos membros dessa grande comunidade."

Poucos americanos tinham ouvido falar da FLDS antes de abril de 2008, quando uma força policial empreendeu uma investida contra o remoto complexo do oeste do Texas conhecido como Rancho da Espera por Sião (Yearning for Zion, ou YFZ). Durante dias, os telespectadores testemunharam o bizarro espetáculo de centenas de crianças e mulheres sendo tocadas para dentro de ônibus escolares por assistentes sociais e policiais. A batida fora motivada por telefonemas a um abrigo para vítimas de violência doméstica, dados, segundo se alegou, por uma garota de 16 anos que se dizia alvo de abusos físicos e sexuais no rancho por parte de seu marido de meia-idade. O que conferia credibilidade a esses telefonemas era o fato de os residentes do rancho da YFZ serem discípulos da FLDS, tendo como "profeta" Warren Jeffs, que havia sido condenado por uma corte de Justiça de Utah, em 2007, por oficiar o casamento de uma garota de 14 anos com um membro da igreja.

O episódio virou espetáculo televisivo, mas logo ficou claro que os telefonemas eram trotes. E, embora as autoridades tenham se preparado para um confronto violento, como o tiroteio de 1993 no complexo do Ramo Davidiano, em Waco, no Texas, o arsenal no rancho YFZ consistia apenas de 33 armas de fogo legalizadas. Uma corte de apelo do Texas descobriu depois que as autoridades não tinham um conjunto de provas que justificasse a remoção de mais de 400 crianças, a maioria das quais foi restituída a suas famílias em dois meses.

Mesmo assim, depois de entrevistar adolescentes grávidas ou que tinham filhos, as autoridades do Texas passaram a investigar como muitas garotas menores de idade haviam sido "seladas" - ou seja, prometidas - a homens mais velhos. Resultado: 12 membros da igreja, inclusive Warren Jeff, foram indiciados sob acusações que iam de bigamia à prática de sexo com menores. O primeiro réu a ir a julgamento, Raymond Jessop, foi condenado por uma das acusações em novembro último. Os julgamentos dos outros réus estão marcados para este ano.

Do penhasco atrás de sua casa em Hildale, Joe Jessop tem uma vista da Faixa do Arizona, extensão florestal que perfaz cerca de 80 quilômetros desde o sul da fronteira de Utah até a franja norte do Grand Canyon. Abaixo se situam os campos das fazendas e os complexos murados de Hildale e Colorado City, aos quais Joe se refere por seu antigo nome, Short Creek (Ribeirão Pequeno). "Quando eu vim pela primeira vez a Short Creek, ainda garoto, havia apenas sete casas aqui", conta Joe, de 88 anos. "Parecia o Velho Oeste."

Hoje, Short Creek abriga estimados 6 mil membros da FLDS - a maior comunidade dessa igreja. Joe Jessop, irmão mais velho de Merril, contribuiu para esse crescimento explosivo de duas maneiras. Com suas feições curtidas pelas intempéries e seu andar de caubói, denunciando um homem que passou a vida ao relento botando o corpo para trabalhar duro, ele é engenheiro autodidata e ajudou na construção de uma intrincada rede de dutos, canais e reservatórios que irriga o árido platô desde então.

Membro altamente respeitado da FLDS, Joe é também o patriarca de uma família de 46 filhos e, de acordo com a última estimativa, 239 netos. "Minha família veio para Short Creek pela mesma razão pela qual todas as outras vieram", diz ele. "Para obedecer à lei do casamento plural, para construir o Reino de Deus. A despeito de tudo que tem sido lançado contra nós, devo dizer que fizemos um bom trabalho."

Membros da religião descrevem como idílica a vida que os Jessop e outras famílias fundadoras construíram, do tipo que enfatiza a devoção religiosa mais antiquada e a cooperação entre vizinhos, e na qual as crianças são criadas em um ambiente saudável, livre de televisão, junk food e pressões sociais. Os críticos, por outro lado, veem a FLDS como um culto isolado cujos membros demonstram perturbadora fidelidade a um homem, o profeta Warren Jeffs, que se autoproclama o porta-voz de Deus na Terra.

Quando se passa algum tempo em Hildale e Colorado City, adquire-se uma visão mais nuançada das coisas. Tal visão revela-se gra-dualmente, porém, devido à natureza insular da comunidade. Muitas casas - superdimensionadas, de modo a abrigar famílias numerosas - se encastelam atrás de muralhas que oferecem um lugar seguro para as crianças brincarem e protegem as famílias dos abelhudos gentios, como os não mórmons são chamados. national geographic teve acesso à comunidade somente com a aprovação da liderança da igreja, depois de consultas ao encarcerado Warren Jeffs.

De acordo com os ensinamentos mórmons originais, boa parte da propriedade em Hildale e em Colorado City é confiada à guarda da igreja. Lutando para ser o mais autossuficiente possível, a comunidade cultiva ampla variedade de frutas e vegetais, e todos, inclusive as crianças, devem ajudar nos trabalhos agrícolas. Os membros da igreja também possuem grandes negócios, de hotéis a manufaturas de máquinas e ferramentas. A cada sábado, os homens se reúnem no salão paroquial para se debruçar sobre uma lista de projetos de construção e manutenção que precisam de voluntários. Em uma típica demonstração de solidariedade, os homens ergueram uma casa de quatro quartos, desde as fundações até o telhado, em um único dia.

Esse espírito comunal se prolonga para dentro do lar poligâmico. Ainda que os arranjos sejam variados - as esposas podem ocupar diferentes alas de uma casa ou ter seus próprios chalés -, as mulheres tendem a delimitar esferas de influência de acordo com suas preferências ou aptidões. Embora cada qual tenha a responsabilidade primária com os próprios filhos, uma esposa pode se ocupar da cozinha, uma segunda atuar como professora (todas as crianças da FLDS em Hildale e Colorado City são educadas em casa) e uma terceira cuidar de corte e costura. Ao mesmo tempo que instila um senso de irmandade, tal divisão do trabalho parece mitigar o ciúme.

"Sei que pode parecer estranho às pessoas de fora", diz Joyce Broadbent, uma amistosa mulher de 44 anos, "mas, pela minha experiência, digo que as irmãs-esposas se dão muito bem. Você pode ser mais próxima de uma do que de outra, e sempre tem uma que pode te irritar às vezes, mas isso acontece em qualquer família."

Joyce é um notável exemplo dessa harmonia. Ela não apenas aceitou outra esposa, Marcia, na família como também ficou entusiasmada com esse acréscimo. Marcia, que saiu de um casamento infeliz nos anos 1980, é também irmã biológica de Joyce. "Eu sabia que meu marido é um bom homem", explica uma sorridente Joyce ao se sentar com Marcia e Heber, o marido comum. "Queria que minha irmã pudesse partilhar da mesma felicidade que eu desfruto."

Nem todas as mulheres da FLDS são assim tão tranquilas em relação ao casamento plural. Dorothy Emma Jessop é uma lépida octogenária que toca uma farmácia de produtos naturais em Hildale. Sentada em sua lojinha, em meio a potes de extratos herbais que ela mesma mói e mistura, Dorothy admite que esperneou quando seu marido começou a incorporar outras esposas. "Para ser honesta", confessa ela, "acho que muitas mulheres passam por maus bocados porque não é fácil dividir o homem que você ama. Acabei entendendo que esse é mais um teste que Deus coloca na sua frente - é o pecado do ciúme, do orgulho - e que eu tinha de superar isso."

O que parece ajudar nessa superação é a consciência de que o papel primordial da mulher na FLDS é gerar e criar tantos filhos quanto for possível de modo a edificar a "família celestial" que se manterá unida pela eternidade afora. Não é incomum encontrar mulheres dessa igreja que deram à luz dez, 12, 16 filhos. (Joyce Broadbent é mãe de 11, e Dorothy Emma Jessop, de 13.) Os cerca de 400 bebês que nascem na clínica de Hildale todo ano são responsáveis pela média etária local de quase 14 anos, em contraste com os 36,6 para todos os Estados Unidos. Com tanta gente na comunidade capaz de traçar sua linhagem até um punhado de famílias pioneiras, alguns poucos sobrenomes se repetem à exaustão em Hildale e Colorado City, sugerindo um aspecto mais sombrio dessa fecundidade: os médicos do Arizona dizem que uma forma severa de doença debilitante chamada de deficiência de fumarase, causada por um gene recessivo, tornou-se prevalente ali devido à consanguinidade.

O choque entre tradição e modernidade no âmbito comunitário pode ser desorientador. Apesar de seus trajes antiquados, a maioria dos adultos na FLDS dispõe de telefones celulares e aprecia picapes esportivas do último tipo.

E, apesar de os televisores estarem agora proibidos, os membros da igreja tendem a ser versados em computador, além de venderem uma gama de produtos, de sabonetes a roupas, via internet. Quando reparei que poucos congregados usavam óculos, indaguei em voz alta se aquilo seria alguma predisposição genética à boa visão. Sam Steed deu uma risadinha. "Não. É que as pessoas aqui são chegadas a uma cirurgia a laser."

O princípio do casamento plural foi revelado aos mórmons em meio a um sigilo estrito. Nuvens negras pairavam sobre a igreja nos primórdios dos anos 1840, diante da disseminação dos rumores de que seu fundador, o profeta Joseph Smith, havia adotado a prática da poligamia. Ao mesmo tempo que negava tal acusação em público, ali por 1843 Smith fez uma revelação a seus mais próximos seguidores. Esse "novo e eterno pacto" com Deus estabelecia o instituto das múltiplas esposas, de maneira que os fiéis pudessem se "multiplicar e preencher a Terra".

Depois do assassinato de Smith por uma turba antimórmon em Illinois, Bringham Young, membro da alta hierarquia da igreja, conduziu os crentes em uma épica jornada de 2 mil quilômetros para o oeste até a bacia de Salt Lake, no então território de Utah, do qual, aliás, foi indicado o primeiro governador. Ali, o pacto de Smith com Deus foi por fim publicamente revelado e, com ele, a noção de que o valor de um homem perante Deus seria medido pelo tamanho de sua família. O próprio Bringham Young teve 55 esposas, que lhe deram 57 filhos.

Em 1890, porém, confrontada com a expropriação de propriedades da igreja sob uma lei federal antipoligamia, a liderança mórmon emitiu um manifesto anunciando o fim do casamento plural - foi o cisma entre a religião original e os fundamentalistas. "A Igreja Mórmon lançou aquele manifesto por razões políticas para depois argumentar que se tratava de uma revelação", diz Willie Jessop, porta-voz da FLDS. "Nós da comunidade fundamentalista acreditamos que os pactos feitos com Deus não devem ser manipulados por razões políticas."

Honrar esse pacto teve um alto preço. A batida que a polícia deu no rancho YFZ em 2008 foi apenas a mais recente em uma longa lista de ações oficiais contra os polígamos. Os governos de Utah e do Arizona procuraram apertar o cerco em torno de Short Creek: em 1935, em 1944 e, a mais notória tentativa, em 1953. Em 1956, as autoridades de Utah reivindicaram a guarda de sete filhos de Vera Black, uma esposa de Hildale, sob a alegação de que sua crença poligâmica a incapacitava para exercer o papel de mãe. Vera pôde reaver seus filhos somente quando concordou em renunciar à poligamia.

Melinda Fischer, uma expansiva mulher de 37 anos, mãe de três filhos, solta uma risada incrédula ao descrever as coisas que lê na imprensa sobre os fundamentalistas. "Sempre sugerem que a gente é mantida aqui contra a nossa vontade", exclama ela. Melinda se acha em posição privilegiada para compreender as visões conflitantes acerca de sua comunidade. Ela é uma das esposas plurais de Jim Jeffs, decano fundamentalista e um dos sobrinhos do profeta Warren Jeffs. Mas ela é também filha de Dan Fischer, antigo membro da igreja que se tornou um de seus mais ruidosos críticos - encabeça uma organização que trabalha com pessoas expulsas de lá. Ao romper com a igreja, nos anos 1990, Fischer viu sua família se desmembrar também. Hoje, 13 de seus filhos abandonaram o fundamentalismo mórmon, enquanto que Melinda e dois de seus meios-irmãos renunciaram ao pai. "Isso não é algo fácil", diz Melinda, "porque, obviamente, eu ainda amo meu pai. Rezo para que ele veja seus erros. Ou, pelo menos, pare de nos atacar."

Se há um ponto sobre o qual os defensores da FLDS e seus detratores concordam é que a maioria dos atuais problemas datam da época em que a liderança passou para a família Jeffs, em 1986. Até então a igreja era um agrupamento comandado de forma mais liberal por um homem benevolente chamado Leroy Johnson, que se apoiava em um colegiado de altos sacerdotes para orientar a igreja. Isso acabou logo quando Rulon Jeffs assumiu o poder, depois da morte de Johnson. Declarado profeta pela comunidade, Rulon solidificou a política do poder personalizado em um único homem.

As acusações de que uma ditadura teocrática estava deitando raízes na Faixa do Arizona tornaram-se mais estridentes quando, após a morte de Rulon Jeffs, em 2002, a FLDS passou às mãos de seu filho Warren, de 46 anos. Ao assumir o papel de profeta, Warren começou desposando várias das viúvas de seu pai, passando, em seguida, a se casar com muitas outras mulheres, inclusive, segundo a dissidente Carolyn Jessop, com oito filhas de Merril Jessop. O número de esposas daqueles que vivem perto do profeta também pode chegar à casa dos dois dígitos. Um documento da igreja conhecido como Registro do Bispo, apreendido no Texas, mostra que um dos assessores de Jeffs, Wendell Nielsen, solicitou 21 esposas.

E, ainda que a FLDS não informe quantas esposas plurais Warren Jeffs assumiu (alguns falam em mais de 80), pelo menos uma delas era menor de idade, de acordo com a Justiça do Texas.

Foi a polêmica do casamento de menores de idade dentro da igreja que atraiu a maior parte das atenções negativas da mídia, mas Dan Fischer encampou outra causa, a dos chamados Garotos Perdidos, que abandonaram ou foram forçados a abandonar a comunidade e acabaram vagando pelas ruas das cidades de Las Vegas, Salt Lake City e St. George. A fundação de Fischer já trabalhou com 300 desses garotos nos últimos sete anos. Fischer reconhece que a maioria deles foi apenas "desencorajada a ficar", mas cita casos de meninos que foram expulsos, "prática que só fez aumentar sob Warren Jeffs", acusa ele.

Fischer atribui esse êxodo, em parte, a um frio cálculo feito pelos líderes da igreja visando a limitar a competição masculina pelo estoque de jovens mulheres casadoiras. "Se você tem homens se casando com 20, 30 ou mais de 80 mulheres", diz ele, "rezam a biologia e a simples matemática que haverá muitos outros homens que não conseguirão arrumar esposas.

A igreja afirma que está mandando esses garotos embora por mau comportamento, mas, se você reparar, eles raramente expulsam meninas."

Igualmente conflituosa tem sido a restauração, por parte da FLDS, de uma antiga política mórmon de transferir mulheres e filhos de um membro da igreja para outro. De acordo com a tradição, isso era feito quando da morte de um patriarca, de modo que suas viúvas fossem amparadas, ou, então, para resgatar uma mulher de uma relação abusiva. Mas os críticos argumentam que, sob o domínio de Jeffs, essa "realocação" tornou-se mais uma arma de controle contra aqueles que ousam sair da linha.

Determinar quem não presta virou uma atribuição exclusiva do profeta. Quando, em janeiro de 2004, Jeffs ordenou a expulsão de 21 homens e a realocação de suas famílias, a comunidade aquiesceu. O diário de Jeffs, também apreendido durante a operação policial no Texas, revela um homem que gerenciava nos mínimos detalhes as decisões comunitárias - tudo de acordo com as revelações que ele recebia durante o sono. Jeffs asseverava que Deus lhe ditava cada uma de suas ações, por ínfimas que fossem. Em uma passagem do diário pode-se ler: "O Senhor mandou que eu fosse até a clínica de bronzeamento artificial e me bronzeasse de modo mais uniforme".

Em 2005, uma corte de Justiça de Utah transferiu das mãos da liderança da FLDS para um fiduciário designado pelo Estado o controle da curadoria que supervisiona boa parte das terras em Hildale e Colorado City. A igreja agora empreende uma campanha para recobrar o controle da curadoria. Quanto a Jeffs, depois de passar mais de um ano na clandestinidade para escapar dos processos em Utah - o que lhe valeu um lugar na lista dos Dez Mais Procurados do FBI -, acabou sendo pego e agora cumpre penas que variam de dez anos a prisão perpétua por cumplicidade em estupro. Entre outros 11 membros da igreja que aguardam julgamento no Texas está Merril Jessop, indiciado por oficiar o casamento de Jeffs com uma menor de idade.

Apesar de tudo isso, o retrato de um sorridente Jeffs continua a adornar a sala de estar de quase todos os lares fundamentalistas. Em sua ausência, seus auxiliares saíram na defesa de sua liderança. Mesmo reconhecendo que casamentos com menores de idade de fato ocorreram no passado, Donald Richter, colaborador de um dos sites oficiais da FLDS, afirma que tal prática chegou ao fim. Quanto aos Garotos Perdidos, ele argumenta que tanto os números citados quanto os motivos das expulsões foram exagerados pelos inimigos da igreja. "Isso ocorre apenas nos casos mais extremos", diz Richter, "e nunca pelas razões banais que eles alegam."

Melinda Fischer não se sentiu abalada por toda essa controvérsia. "Warren é o mais carinhoso, o mais adorável dos homens", sustenta ela. "A imagem criada em torno dele pela mídia e por seus inimigos não bate com quem ele realmente é." Melinda tem respostas prontas para a maioria das acusações contra Jeffs e mostra-se enfática na defesa da política da realocação. Para ela, isso quase sempre ocorre a pedido de uma esposa abandonada ou abusada, uma afirmação discutível. Jeffs, em seu diário, narra a realocação das esposas de três homens, inclusive de seu irmão David, porque Deus lhe mostrou que eles "não eram capazes de exaltar suas esposas, tendo por isso perdido a confiança do Senhor". Uma das esposas de seu irmão aceitou mal a novidade e sequer conseguia beijar o novo marido. "Ela mostrou espírito de resistência, mas foi em frente", anota Jeffs. "Ela precisa aprender a se submeter ao clero." Ou seja, a ele.

Todavia, a defesa que Melinda faz de Jeffs ressalta um dos aspectos mais curiosos da fé poligâmica: o papel central da mulher na manutenção do sistema. Isso não é novidade. Nos tempos de Bringham Young, uma instituição de caridade acorreu a Utah a fim de estabelecer um lar seguro para mulheres que buscassem escapar a essa "escravidão branca". A casa ficou virtualmente vazia. Hoje, as mulheres da FLDS na área de Hildale-Colorado City contam com amplas oportunidades de "escapar". Elas têm telefones celulares, dirigem carros, e não existem guardas a vigiá-las. Mesmo assim elas não fogem.

Sem dúvida, uma das razões é que, tendo sido criadas nessa cultura, elas conhecem pouca coisa além disso. Cair fora significa deixar tudo para trás: a comunidade, a segurança pessoal e a própria família. Carolyn Jessop, a esposa plural de Merril Jessop que abandonou a igreja, compara a entrada ao mundo externo a "pisar em outro planeta". Diz ela: "Eu não contava com nenhum treino para a vida aqui fora. Muitas mulheres na FLDS nem sabem como calcular o saldo num talão de cheques, quanto mais solicitar um emprego. Assim, a perspectiva de ter de navegar no mundo externo é algo intimidante".

Parece haver outro forte motivo para as mulheres ficarem: poder. As mulheres da FLDS com que conversei tendem a ser bem mais articuladas e seguras que os homens, a maioria dos quais parece paralisada pelo acanhamento. Isso faz sentido quando se começa a entender que as mulheres respondem ao anseio de "se multiplicar e povoar a Terra", enquanto os homens vivem em uma competição para ser considerados pelo profeta dignos o suficiente para se casar. O resultado é uma cultura de feição patriarcal que possui, de fato, muitos elementos matriarcais.

Há limites a esse poder feminino, como é óbvio, pois ele está sujeito aos ditames do profeta. Depois de ouvir a briosa defesa que Melinda faz de Warren Jeffs, pergunto-lhe como ela reagiria se fosse realocada. "Estou segura de que isso não ocorreria", responde ela com desconforto. "Mas e se acontecesse?", insisto. "Você obedeceria?"

Pela única vez durante a entrevista, Melinda fecha a cara. Recuando para o encosto da cadeira, ela vira o rosto e me olha de esguelha.

Em uma tarde ensolarada de março de 2009, Bob Barlow, um membro da igreja de meia-idade, leva-me a um tour pelo rancho YFZ, no oeste do Texas. O complexo consiste de cerca de 25 casas no estilo cabana rústica de madeira, mais um certo número de oficinas e fábricas espalhadas por 685 hectares. No centro situa-se um reluzente templo de pedra branca. É notável o que os moradores conseguiram tirar daquela planície acidentada. Com maquinaria pesada, eles criaram um chão de terra no terreno rochoso, esmagando as pedras e misturando os resíduos à fina camada de solo arável. Ali plantaram pomares, jardins e estavam em vias de criar uma comunidade autossuficiente em meio a uma paisagem árida até que tudo foi suspenso depois da investida policial em 2008. "Vamos dar a volta por cima, vamos nos tornar melhores e mais fortes do que antes", relata Barlow.

Suspeito que ele tenha razão. Tantas vezes na história da poligamia mórmon o mundo externo julgou ter o movimento sob rédeas curtas, apenas para vê-lo renascer renovado. Lembrei-me disso numa tarde em Colorado City ao conversar com Vera Black. Aos 92 anos e com a saúde fragilizada, Vera é a mulher cujos filhos lhe foram tomados pelas autoridades de Utah em 1956 e devolvidos apenas quando ela concordou em renunciar à poligamia. Dias depois de fazer tal promessa, ela já estava de volta a Short Creek com seus filhos, reafirmando seu compromisso com o casamento plural.

Vera, que vive agora com sua filha Lilian, jaz rodeada pelos filhos em uma cama hospitalar. Na casa dos 50 e dos 60 anos, seus filhos contam mais uma vez a história daquela antiga separação, tanto da mãe quanto de sua fé, vários deles vertendo lágrimas, como se a dor fosse recente. "Tive de fazer aquela promessa", conta Vera com um sorriso, "mas cruzei os dedos na hora."

Fonte: viajeaqui.abril.com.br

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