Dos céus, um correspondente estrangeiro analisa a mania por helicópteros dos habitantes de São Paulo - a "cidade-excesso", como certamente escreveria Ítalo Calvino.
Em um dos 400 voos diários registrados, o piloto Rogério Delgado conduz o helicóptero de uma rede de TV. Boa parte do noticiário televisivo vem de boletins aéreos, na cidade que já possui a segunda maior frota do mundo.
"A verdade é que nunca pensei que ia precisar de um helicóptero para meu trabalho. Mas, com ele, consigo visitar 12 das minhas lojas por dia, em vez de quatro", diz o empresário. Maia comercializa óculos de sol. Sua marca, Chilli Beans, é líder no Brasil. Nos aproximamos do heliporto da Universidade da Cidade de São Paulo, o mais próximo ao shopping Tatuapé. A aterrissagem é perfeita. Tempo de voo: dez minutos. Sem congestionamento. Sem estresse.
Com São Paulo a nossos pés, a lembrança que me vem à mente são as páginas de As Cidades Invisíveis, livro mítico de Ítalo Calvino. Sempre me impressionou a citação do autor italiano a Baucis, uma cidade edificada sobre "as finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra". Suspeito que Caíto Maia e outros executivos, assim como os habitantes da cidade imaginária de Baucis, "raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima".
Os helicópteros tornaram-se populares nos céus de São Paulo em meados dos anos 1980, quando passaram a ser usados como apoio logístico da Polícia Militar nas perseguições a criminosos e outros afazeres. Mas agora são uma febre que acomete militares e civis, dos mais variados níveis econômicos e sociais. Quando comecei a pesquisar o cotidiano dos usuários desse meio de transporte na maior cidade da América do Sul, em 2006, enviei um e-mail perplexo a jornalistas e amigos europeus. "Em São Paulo, os executivos não viajam de táxi ou de limusine. É tempo perdido. Há sequestros. Engarrafamentos. Então, a rotina deles é: do aeroporto ao arranha-céu, da reunião ao hotel (com check-in direto no último andar). Do hotel ao aeroporto." Minha suspeita inicial, de que a classe alta vivia quase no céu, literalmente, foi confirmada pouco a pouco. Hoje, nos dias úteis, se contabilizam uma média de 400 voos diários. Ao longo de 2008, foram registradas oficialmente 68,8 mil decolagens e aterrissagens. A frota da cidade já tem 325 aeronaves - 100 a menos que Nova York, onde está a maior frota do mundo.
Todavia, dezenas de voos depois, percebi que o fenômeno já não se restringe à classe empresarial. Isso fica claro para mim, certa manhã, no aeroporto de Congonhas, onde a Citroën premia os três melhores vendedores do mês com um passeio panorâmico. Eu embarco de carona. O trajeto é curto e intenso: o interior da aeronave, logo após a decolagem, vira uma festa. Naiara, uma jovem risonha, não para de fotografar com seu celular, fascinada com os 1,5 mil quilômetros quadrados da metrópole, seus 16,5 mil quilômetros de ruas. Os outros premiados riem compulsivamente enquanto tentam falar com amigos e familiares: "Mãe, estou num helicóptero!"
E tem mais, como pude observar: noivas sonham em aterrissar de branco na igreja saindo de um helicóptero. No Dia dos Namorados, casais sobrevoam a metrópole entregues ao romantismo aéreo. No Natal, Papai Noel troca seu antiquado trenó com renas por um modelo Bell americano. Moderníssimo. Chiquérrimo.
Voar, em uma cidade onde tudo é tão frenético como São Paulo, tem sido o êxtase.
Alameda Santos, bairro dos Jardins. Hotel Renaissance. Nelson Garcia, gerente, e Eduardo Silva, chefe de segurança, me esperam.
"Os clientes de helicóptero fazem o check-in no 23o andar. Não precisam descer até a recepção", afirma um orgulhoso Garcia. Ele menciona alguns hóspedes honorários: o presidente Lula, governadores, pilotos de Fórmula 1. A diária da suíte presidencial custa 19 000 reais; a aterrissagem, 500. Nelson e Eduardo me seguem em uma insólita caminhada sobre o heliporto. O horizonte é um skyline de antenas e edifícios, rasgado por uma neblina de aparência corrosiva.
Debruçado sobre minha própria vertigem no parapeito, lembro-me das histórias do piloto paulista Roberto Nogueira. "Nesta cidade, algumas crianças vão ao aniversário de seus amigos nos helicópteros de seus pais. Já pilotei para um homem que, para reconquistar sua ex-mulher, subiu ao helicóptero com um microfone e cantou uma música sertaneja. A mulher ficou alucinada na varanda", contou-me ele.
Todo esse movimento aéreo exige um aparato operacional. Desde junho de 2004, está baseada em Congonhas a única equipe de controladores aéreos de helicópteros de uma área urbana no mundo - um time de cerca de 50 pessoas que controla 102 quilômetros quadrados de superfície. "Monitoramos o coração financeiro e as principais áreas residenciais em que sempre há uns cinco helicópteros voando ao mesmo tempo. Na hora de pico, até 12. Criamos 21 corredores imaginários por onde eles podem circular", diz o capitão Carlos Alberto de Mattos Bento, do Serviço Regional de Proteção ao Voo de São Paulo (SRPV-SP), órgão ligado à Aeronáutica.
Ainda assim, há problemas. As associações de moradores que lutaram durante anos contra o barulho das aeronaves acabam de obter sua primeira vitória. A prefeitura sancionou, em outubro, uma lei que restringe o uso dos heliportos, coibindo voos entre as 23 e as 6 horas. Também não poderão funcionar heliportos a menos de 300 metros de escolas, creches, hospitais e asilos. O próprio prefeito Gilberto Kassab terá de se submeter à nova lei. Decolando do heliporto do Banco Santander, perto de sua casa no Jardim Paulistano, ou do Edifício Matarazzo, da prefeitura, ele realiza umas 15 horas mensais de voo. "As novas medidas significam o cancelamento de 90% dos heliportos", reage Felipe Diniz, da Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero (Abraphe). Segundo a prefeitura, a nova lei pretende apenas "colocar um pouco de ordem". Dos 215 heliportos da capital, 129 não têm autorização municipal. Funcionam apenas com a permissão da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que analisa sua segurança.
Cléber Mansur, presidente da Abraphe, sempre foi "a favor do limite de horário para voos". Mas questiona a radicalidade da nova lei.
"Os helicópteros se transformaram numa necessidade", diz ele. Mansur é tão pragmático quanto o antigo presidente, Carlos Alberto Artoni. Certa vez, na sede de Helicidade, um dos maiores heliportos municipais, no bairro do Jaguaré, Artoni sorriu quando perguntei sobre o problema do ruído. "Quem quiser ouvir passarinhos tem de viver fora de São Paulo. Aqui é preciso se acostumar com a modernidade", disparou.
Não vejo passarinhos, de fato, em uma das mais emblemáticas vias da cidade, a marginal Pinheiros. Sigo de táxi rumo ao shopping de alto consumo Daslu. Não é sequer horário de rush, mas o carro se move em câmera lenta. Sinto súbita saudade dos helicópteros.
Na Daslu, os clientes chegam em Audi, Mercedes e luxuosos 4x4. Ou, sem cerimônia, caem do céu no heliporto privado. Na sala de espera dos passageiros, contemplo esculturas e pinturas exclusivas. Tudo ali revela outra palavra-chave da helicopteromania: riqueza. São Paulo representa 75% do mercado de luxo do Brasil, com um movimento médio estimado de 1,5 bilhão de dólares anuais. Na cidade estão reunidas 58% das famílias ricas do país (443 462, segundo o Atlas da Exclusão Social). Uma funcionária explica-me que muitos usuários do heliporto da Daslu escolheram o espaço simplesmente como lugar de reunião. "As pessoas desembarcam, passam umas horas e decolam de novo", diz.
A crise econômica não ameaçou o vigor aéreo de São Paulo, a Helicopterópolis. Quem não tem dinheiro para comprar um helicóptero inteiro pode optar pela propriedade compartilhada. "Paga-se uma cota e tem-se uso garantido. Um Esquilo custa uns 2,2 milhões de dólares. Nosso cliente pode pagar apenas 10% disso", diz Rogério Andrade, presidente da Helisolutions, empresa que gerencia o heliporto da Daslu.
De novo no ar, observo São Paulo, a mesma urbe esfumaçada, marcada com pontinhos e linhas. Hamilton A. Rocha sobrevoa o condomínio de Alphaville, cheio de heliportos e mansões. Hamilton, de 50 anos, simpático, é um dos comandantes mais populares do país. As notícias que apura em seus voos aparecem nos principais canais de TV. O currículo de seu RH 44 Newscopter é memorável: incêndios, perseguições, rebeliões, engarrafamentos. "Hoje, sem imagens aéreas, as televisões perdem audiência", afirma.
O comandante faz um giro de 180 graus e voltamos à pista de aterrissagem do Helipark, o maior centro de serviços especializados para helicópteros da América Latina. O céu: límpido, azul-turquesa. O chão: marrom, revestido de favelas. E agora, com o Helipark à vista, sou tomado por memórias de alguns de meus voos anteriores. Lembro-me do empresário enclausurado em um spa que ligou para sua secretária mandar uma pizza, escondida, em seu helicóptero, porque não suportava mais a dieta. Recordo-me até mesmo de voos que perdi por causa de congestionamentos ou burocracias: com o piloto Emerson Fittipaldi, com o apresentador de TV Fausto Silva, com um executivo que iria assistir a uma partida de futebol com o governador.
Contemplo São Paulo do ar, a cidade-excesso. A bordo do Newscopter de Hamilton, acabo de entender os habitantes da estratosfera da invisível Baucis/Helicopterópolis. Na verdade, cercados de nuvens e solidão, tal como conta Ítalo Calvino, os homens-helicópteros, "com binóculos e telescópios apontados para baixo, não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência". No fundo, acho que consigo escutar Calvino sussurrando "amam a terra tal como era antes deles".
Fonte: viajeaqui.abril.com.br
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