Header

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Bebês do futuro

O fantasma da eugenia ronda a biogenética

Assim que a ciência deu os primeiros passos para desvendar o sequenciamento genético, surgiu a esperança de que a espécie humana um dia seria "aperfeiçoada". Simultaneamente, apareceu o medo de que o sonho desembocasse em algum tipo de projeto de eugenia nos moldes do alimentado pelos nazistas no século XX.

"Há um certo consenso de que a utilização da fertilização in vitro com fins eugênicos não deve ser feita. Isso seria interferir no futuro da diversidade genética da humanidade", afirma Carlos Vital Correa Lima, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. "Vamos matar o homem se praticarmos a eugenia: o que nos mantém vivos como espécie é a evolução natural", opina Alexandre Pupo Nogueira, ginecologista e obstetra do Hospital Sírio Libanês, de São Paulo.

A perspectiva de escolher características físicas e aptidões das pessoas poderia mudar a sociedade que conhecemos. Mas há nuanças nessa questão. "O fantasma da eugenia não é dado pelas técnicas genéticas, mas, sim, pelo uso que vamos fazer delas", afirma Debora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e autora do livro Admirável Nova Genética: Bioética e Sociedade. "Imaginar que nós teríamos uma sociedade de pessoas idênticas é uma realidade muito fatalista diante das escolhas que cada um de nós faz." Para defender o ponto de vista, a pesquisadora cita um exemplo que chama a atenção, o de comunidades formadas por surdos que foram à Justiça para brigar pelo direito de escolher um embrião surdo. "Elas desafiaram a ideia de que sempre aderimos às inovações da ciência", afirma Diniz.

Para Luiz Vicente Rizzo, imunologista e superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo, é improvável que, no futuro, a técnica nos leve a formar uma sociedade de seres humanos superdotados. "Não vai acontecer. A ciência vai nos permitir tratar melhor as pessoas, aumentar a expectativa do indivíduo, o que pode resultar em modificações ambientais e comportamentais."

Outro temor é que o "aperfeiçoamento" biotecnológico produza uma espécie de preconceito de ordem genética, pelo qual as pessoas "imperfeitas" seriam prejudicadas. Nos Estados Unidos, a discussão e as ações a respeito já começaram. Há cerca de dois anos, a seleção de candidatos a emprego a partir de testes genéticos chamou a atenção do governo americano, que criou uma lei que proíbe empregadores e empresas de seguro de saúde a usar o DNA como critério de escolha na hora da contratação.

Para Diniz, a dúvida é se o preconceito já existente poderá se agravar ainda mais. "As pessoas com deficiência já sofrem discriminação. Nós vivemos em um mundo com grau de perfeição, com ou sem genética."

A ciência e a lei - Considerando-se a velocidade das inovações genéticas, o papel dos legisladores será cada vez mais importante. "As regras do jogo têm que estar muito claras. O problema é que, enquanto não houver isso, a exceção permite tudo", diz Diniz.

Para Correa Lima, do Conselho Federal de Medicina, a sociedade deverá ditar aos legisladores o que será proibido ou permitido à ciência e aos cientistas. "É preciso haver uma sinergia entre as autoridades, cientistas e sociedades, para que os benefícios da genética venham em prol das futuras gerações", afirma. A opinião do presidente da Comissão de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP) vai no mesmo sentido: "Se a sociedade achar que é válido, o direito vai acompanhar isso", prevê Rui Geraldo Viana.

Como serão as mães do futuro?

Ao contrário do que sugere nossa imaginação acerca do futuro, o "bebê tecnológico" chegará ao mundo em um ambiente simples e familiar. A tendência é que eles continuem a nascer em quartos de hospitais, mas esses locais deverão cada vez mais se parecer com o lar dos pais do recém-chegado. "Alguns grandes hospitais colocaram isso em prática, com o 'parto humanizado': quartos específicos para o parto natural, com banheira de hidromassagem. É uma tentativa de transformar o ambiente hospitalar em local mais hospitaleiro para a grávida", afirma Alexandre Pupo Nogueira, ginecologista e obstetra do Hospital Sírio Libanês, de São Paulo. A família tem fácil acesso ao quarto, e o equipamento de anestesia fica propositalmente escondido atrás de móveis.

A tendência mistura componentes contraditórios. "Se, por um lado, avançam os limites da medicina, por outro lado, queremos que ela seja mais natural, sem intervenções e medicamentos", diz Nogueira. Isso poderá desaguar inclusive em uma mudança no momento do parto propiamente. Atualmente, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mais de 80% dos nascimentos na rede privada brasileira são realizados por cirurgia cesariana. "Com a evolução da anestesia, analgesia e exame pré-natal, não haverá o estigma da dor, e a mulher se sentirá mais segura para optar pelo parto normal", afirma Eduardo Zlotinik, ginecologista e obstetra do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo.

Há, porém, um obstáculo a esse movimento: a idade das gestantes - cada vez mais avançada. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de mulheres que engravidaram pela primeira vez depois dos 40 anos cresceu 27% na última década. As razões já são conhecidas: "A mulher está empurrando a gravidez para os limites do seu relógio biológico. A maternidade é colocada em segunda instância em relação à carreira", analisa Nogueira. "Na década de 1990, considerávamos uma mulher de 31 anos uma gestante em idade avançada. Hoje, são as de 35. Em breve, isso vai mudar de novo", prevê o ginecologista.

A idade, é sabido, é uma inimiga da gravidez. Acrescenta dificuldades à fecundação e, quando ela acontece, provoca a gestação de risco e problemas metabólicos - complicações para o bebê e para o parto. "A mulher, então, passa a ter pressão alta, chances de desenvolver pré-eclampsia, diabetes pré-gestacional, e o risco de má-formação também é maior", diz Nogueira. Zlotinik traz ainda outra complicação, que pode agir contra o retorno ao parto natural: gestantes mais velhas tendem a ser mais gordas, o que influencia o tamanho do bebê e pode forçar uma cesariana.

O desenvolvimento médico e científico deverá também incentivar cada vez mais a realização de uma consulta "pré-concepcional". "Para a realização de exames clínicos, estabelecimento do peso adequado, indicação de atividades físicas e consumo de ácido fólico, para ajudar na formação da parte neurológica da criança", diz Zlotinik. A medicina deverá ainda incrementar as cirurgias fetais, prevenindo problemas futuros.

A idade avança, as chances de gravidez despencam e a procura pela reprodução assistida aumenta. Nos cálculos de Emerson Cordts, especialista em reprodução humana do Hospital e Maternidade São Luiz, de São Paulo, aos 40 anos, uma mulher mantém 8% de sua capacidade reprodutiva; aos 43, só 1%. Daí, a procura pela reprodução assistida. Pesquisa realizada Universidade de Oxford junto a 1.563 clínicas de 53 países, o número de bebês que nasceram a partir de técnicas de reprodução cresceu 25% em dois anos.

A grande promessa para as mulheres que gostariam de engravidar mais tarde é o congelamento de óvulos. A técnica permite que elas preservem as células em bancos de óvulos por até vinte anos para posterior implantação. "Antes, o procedimento era muito precário, mas avançou muito nos últimos dois anos", afirma Cordts. O recurso também é uma alternativa para vítimas de câncer, que precisam se submeter à quimioterapia e, por isso, param de produzir óvulos.

Outra técnica em estudo - aplicada em casos de exceção, mas que poderá revolucionar a reprodução assistida - é a maturação in vitro do óvulo, pela qual a célula feminina é desenvolvida fora do organismo. "Se isso progredir, seria um avanço. A mulher não precisaria ser submetida a medicação hormonal para engravidar", comenta o especialista.

Em busca das crianças livres de doenças

"Um bebê saudável." O desejo mais frequente de pais e mães em relação aos filhos poderá gradualmente ser realizado pela ciência. E o principal responsável por isso será o mapeamento do genoma humano - concluído em 2003.

"O desenvolvimento da biogenética vai mudar completamente a questão 'ter filhos'", afirma Salmo Raski, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica. Entre as mudanças antevistas pelo médico está a popularização do aconselhamento genético. Trata-se de um estudo prévio dos genes dos candidatos a pai e mãe e da análise de eventuais problemas decorrentes da combinação deles. Em outras palavras, da formação de um embrião pela fecundação. Um exemplo: se a candidata a mãe traz uma cópia alterada e outra normal de um gene, e o pai possui as duas versões normais, o filho deste casal não terá pré-disposição a doenças genéticas.

Atualmente, o aconselhamento em geral é feito apenas por pessoas que possuem antecedente de doenças genéticas na família. "Daqui a dez anos, isso estará mais acessível. Então, a prática será realizada a despeito da predisposição familiar", prevê Raski.

O aconselhamento, porém, é apenas o primeiro passo. O segundo depende principalmente da capacidade da ciência de desvendar a base genética de algumas doenças. As perspectivas, porém, são boas. "O número de males diagnosticáveis vai aumentar entre dez e vinte vezes", diz Luiz Vicente Rizzo, imunologista e superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo.

O maior desafio será encontrar a base genética das doenças mais comuns, como obesidade, problemas cardíacos e câncer - que são provocadas por vários fatores. Se a luz se abrir sobre essas questões, os pais de uma criança que tiver pré-disposição a diabetes ou câncer de pulmão, por exemplo, poderão modificar os hábitos de vida desse filho ou buscar intervenções para evitar a manifestação dos males.

Cortando o mal pela raiz - Outro caminho que deverá ajudar na saúde das crianças do futuro é o diagnóstico genético pré-implantacional. Em tese, pode-se dizer que esse pretende ceifar o mal pela raiz - ao contrário do aconselhamento genético, que pode apenas alertar os pais sobre eventuais complicações futuras.

O método, que só pode ser realizado na reprodução assistida, consiste em escolher o melhor embrião para a implantação. Idealmente, o "eleito" estaria livre de doenças genéticas específicas.

"É um procedimento caro. Mas sua limitação é a insegurança, porque não é possível garantir que o bebê nascerá sem uma doença", explica Decio Brunoni, médico geneticista do berçário do Hospital e Maternidade São Luiz e coordenador do Centro de Genética Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Outro porém: o risco de se usar o procedimento como uma espécie de "cardápio de genes" para criar uma criança perfeita ainda é desconhecido. "Quando você mexe com os genes, há a possibilidade de causar outras doenças que talvez não conheçamos", acrescenta Luiz Eduardo T. Albuquerque, diretor da clínica de reprodução assistida Fertivitro.

No início de 2009, nasceu a primeira bebê britânica cujo embrião fora selecionado para não carregar a variação do gene BRCA1 - relacionado ao câncer de mama. Apesar de animador, o resultado pode ser ilusório, já que não significa a descoberta para esse tipo de doença. "Com o câncer é diferente, pois em 90% dos casos são provocados por alterações genéticas acumuladas durante a vida do paciente. O câncer hereditário é o menos frequente", diz Brunoni.

A escolha do embrião perfeito soa como música para os ouvidos dos candidatos a pai e mãe. Mas ainda é uma melodia distante, pelos fatores já apresentados. Por isso, aposta a geneticista Mayana Zatz, colunista de VEJA.com, a reprodução seguirá inalterada por bom tempo. "O diagnóstico genético pré-implantacional é algo super sofisticado. Se isso acontecer, vai ser daqui a muito tempo. E a grande maioria das pessoas vai continuar se reproduzindo de maneira natural", afirma Mayana.

Enquanto esses procedimentos não avançam o sificiente para se tornarem populares, pesquisadores tentam facilitar o que já existe. É o caso da amniocentese, exame invasivo pelo qual é retirada uma amostra do líquido amniótico do útero da grávida para testar eventual má-formação congênita. Médicos pesquisam a possibilidade de realizar o exame, que pode diagnosticar males como síndrome de Down, apenas retirando sangue da grávida, com cerca de seis ou até oito semanas de gravidez.

Escolheremos todas as características dos nossos filhos?

Qual será a cor dos olhos do seu filho? Utilizando a regra de probabilidades aprendida no ensino fundamental, seria fácil descobrir quais as chances de uma criança nascer com olhos claros ou escuros. A ferramenta, no entanto, pode não fazer mais sentindo no futuro próximo. No ano passado, a clínica de fertilização americana Fertility Institutes anunciou em seu site que em pouco tempo disponibilizaria o serviço de escolha de cor de pele e dos olhos a partir do diagnóstico genético pré-implantacional - em que o melhor embrião é escolhido para a gestação.

Após críticas severas da comunidade médica, o anúncio foi retirado do ar. Mas permaneceu a dúvida: já é - ou será em breve - realmente possível fazer isso? Geneticistas ouvidos por VEJA.com acreditam que apontar e manipular os genes que determinam cor de cabelo, pele e olhos não é tarefa difícil atualmente. "Portanto, esse não seria um procedimento caro", afirma Luiz Vicente Rizzo, imunologista e superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.

Outra escolha que está ao alcance da ciência é a do sexo do bebê. Nos Estados Unidos, a opção já está autorizada. Por aqui, porém, a prática é proibida pelo Conselho Federal de Medicina. Para especialistas, a escolha do sexo pode ser considerada o início da eugenia.

Mais difícil seria atender outras demandas paternas. Pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Nova York revelou que 10% dos entrevistados apoiavam testes genéticos pré-natais que favorecessem o desenvolvimento de filhos de porte atlético. Igual parcela queria interferir na estatura e 13%, na inteligência. Para os geneticistas ouvidos por VEJA.com, esses ainda são desejos mais distantes, levando-se em conta o que a ciência sabe hoje.

"Construir geneticamente um corpo atlético, por exemplo, é uma grande fantasia", sentencia Decio Brunoni, geneticista do berçário do Hospital e Maternidade São Luiz e coordenador do Centro de Genética Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Não se sabe quais são os genes que formariam esse corpo atlético - devem ser centenas de genes. A grande maioria das características humanas são multifatoriais, dependem de dezenas de genes e da interação com meio ambiente."

O ceticismo dos especialistas pode desanimar também aqueles que querem gerar gênios, elevando geneticamente o Q.I. do filho na fase embrionária. "É impossível", garante Brunoni. "A pessoa nasce com o seu potencial genético, que é uma média do potencial da família. O resto é cultura." Segundo o geneticista, não há um gene específico que determina o grau de inteligência de um indivíduo. A responsabilidade recai sobre vários deles - e também sobre o conjunto. "Trata-se de uma pesquisa que se desenrolará durante todo este século. Por ora, não temos nenhuma perspectiva a respeito, indicando uma receita para construir um cérebro mais inteligente", vaticina.

A geneticista Mayana Zatz, colunista de VEJA.com, resume a o tamanho do obstáculo à frente da ciência. "Características do embrião como cor dos olhos, cabelo e pele dependem exclusivamente de genes - então, saberemos cada vez mais a respeito. Inteligência e outras, que dependem do ambiente, são mais complicadas", diz Mayana.

Fonte: http://veja.abril.com.br/complementos-materias/bebes-futuro/info-popup.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário