Assim que a ciência deu os primeiros passos para desvendar o sequenciamento genético, surgiu a esperança de que a espécie humana um dia seria "aperfeiçoada". Simultaneamente, apareceu o medo de que o sonho desembocasse em algum tipo de projeto de eugenia nos moldes do alimentado pelos nazistas no século XX.
"Há um certo consenso de que a utilização da fertilização in vitro com fins eugênicos não deve ser feita. Isso seria interferir no futuro da diversidade genética da humanidade", afirma Carlos Vital Correa Lima, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. "Vamos matar o homem se praticarmos a eugenia: o que nos mantém vivos como espécie é a evolução natural", opina Alexandre Pupo Nogueira, ginecologista e obstetra do Hospital Sírio Libanês, de São Paulo.
A perspectiva de escolher características físicas e aptidões das pessoas poderia mudar a sociedade que conhecemos. Mas há nuanças nessa questão. "O fantasma da eugenia não é dado pelas técnicas genéticas, mas, sim, pelo uso que vamos fazer delas", afirma Debora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e autora do livro Admirável Nova Genética: Bioética e Sociedade. "Imaginar que nós teríamos uma sociedade de pessoas idênticas é uma realidade muito fatalista diante das escolhas que cada um de nós faz." Para defender o ponto de vista, a pesquisadora cita um exemplo que chama a atenção, o de comunidades formadas por surdos que foram à Justiça para brigar pelo direito de escolher um embrião surdo. "Elas desafiaram a ideia de que sempre aderimos às inovações da ciência", afirma Diniz.
Para Luiz Vicente Rizzo, imunologista e superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo, é improvável que, no futuro, a técnica nos leve a formar uma sociedade de seres humanos superdotados. "Não vai acontecer. A ciência vai nos permitir tratar melhor as pessoas, aumentar a expectativa do indivíduo, o que pode resultar em modificações ambientais e comportamentais."
Outro temor é que o "aperfeiçoamento" biotecnológico produza uma espécie de preconceito de ordem genética, pelo qual as pessoas "imperfeitas" seriam prejudicadas. Nos Estados Unidos, a discussão e as ações a respeito já começaram. Há cerca de dois anos, a seleção de candidatos a emprego a partir de testes genéticos chamou a atenção do governo americano, que criou uma lei que proíbe empregadores e empresas de seguro de saúde a usar o DNA como critério de escolha na hora da contratação.
Para Diniz, a dúvida é se o preconceito já existente poderá se agravar ainda mais. "As pessoas com deficiência já sofrem discriminação. Nós vivemos em um mundo com grau de perfeição, com ou sem genética."
A ciência e a lei - Considerando-se a velocidade das inovações genéticas, o papel dos legisladores será cada vez mais importante. "As regras do jogo têm que estar muito claras. O problema é que, enquanto não houver isso, a exceção permite tudo", diz Diniz.
Para Correa Lima, do Conselho Federal de Medicina, a sociedade deverá ditar aos legisladores o que será proibido ou permitido à ciência e aos cientistas. "É preciso haver uma sinergia entre as autoridades, cientistas e sociedades, para que os benefícios da genética venham em prol das futuras gerações", afirma. A opinião do presidente da Comissão de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP) vai no mesmo sentido: "Se a sociedade achar que é válido, o direito vai acompanhar isso", prevê Rui Geraldo Viana.
Como serão as mães do futuro?
A tendência mistura componentes contraditórios. "Se, por um lado, avançam os limites da medicina, por outro lado, queremos que ela seja mais natural, sem intervenções e medicamentos", diz Nogueira. Isso poderá desaguar inclusive em uma mudança no momento do parto propiamente. Atualmente, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mais de 80% dos nascimentos na rede privada brasileira são realizados por cirurgia cesariana. "Com a evolução da anestesia, analgesia e exame pré-natal, não haverá o estigma da dor, e a mulher se sentirá mais segura para optar pelo parto normal", afirma Eduardo Zlotinik, ginecologista e obstetra do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo.
Há, porém, um obstáculo a esse movimento: a idade das gestantes - cada vez mais avançada. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de mulheres que engravidaram pela primeira vez depois dos 40 anos cresceu 27% na última década. As razões já são conhecidas: "A mulher está empurrando a gravidez para os limites do seu relógio biológico. A maternidade é colocada em segunda instância em relação à carreira", analisa Nogueira. "Na década de 1990, considerávamos uma mulher de 31 anos uma gestante em idade avançada. Hoje, são as de 35. Em breve, isso vai mudar de novo", prevê o ginecologista.
A idade, é sabido, é uma inimiga da gravidez. Acrescenta dificuldades à fecundação e, quando ela acontece, provoca a gestação de risco e problemas metabólicos - complicações para o bebê e para o parto. "A mulher, então, passa a ter pressão alta, chances de desenvolver pré-eclampsia, diabetes pré-gestacional, e o risco de má-formação também é maior", diz Nogueira. Zlotinik traz ainda outra complicação, que pode agir contra o retorno ao parto natural: gestantes mais velhas tendem a ser mais gordas, o que influencia o tamanho do bebê e pode forçar uma cesariana.
O desenvolvimento médico e científico deverá também incentivar cada vez mais a realização de uma consulta "pré-concepcional". "Para a realização de exames clínicos, estabelecimento do peso adequado, indicação de atividades físicas e consumo de ácido fólico, para ajudar na formação da parte neurológica da criança", diz Zlotinik. A medicina deverá ainda incrementar as cirurgias fetais, prevenindo problemas futuros.
A idade avança, as chances de gravidez despencam e a procura pela reprodução assistida aumenta. Nos cálculos de Emerson Cordts, especialista em reprodução humana do Hospital e Maternidade São Luiz, de São Paulo, aos 40 anos, uma mulher mantém 8% de sua capacidade reprodutiva; aos 43, só 1%. Daí, a procura pela reprodução assistida. Pesquisa realizada Universidade de Oxford junto a 1.563 clínicas de 53 países, o número de bebês que nasceram a partir de técnicas de reprodução cresceu 25% em dois anos.
A grande promessa para as mulheres que gostariam de engravidar mais tarde é o congelamento de óvulos. A técnica permite que elas preservem as células em bancos de óvulos por até vinte anos para posterior implantação. "Antes, o procedimento era muito precário, mas avançou muito nos últimos dois anos", afirma Cordts. O recurso também é uma alternativa para vítimas de câncer, que precisam se submeter à quimioterapia e, por isso, param de produzir óvulos.
Outra técnica em estudo - aplicada em casos de exceção, mas que poderá revolucionar a reprodução assistida - é a maturação in vitro do óvulo, pela qual a célula feminina é desenvolvida fora do organismo. "Se isso progredir, seria um avanço. A mulher não precisaria ser submetida a medicação hormonal para engravidar", comenta o especialista.
Em busca das crianças livres de doenças
"O desenvolvimento da biogenética vai mudar completamente a questão 'ter filhos'", afirma Salmo Raski, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica. Entre as mudanças antevistas pelo médico está a popularização do aconselhamento genético. Trata-se de um estudo prévio dos genes dos candidatos a pai e mãe e da análise de eventuais problemas decorrentes da combinação deles. Em outras palavras, da formação de um embrião pela fecundação. Um exemplo: se a candidata a mãe traz uma cópia alterada e outra normal de um gene, e o pai possui as duas versões normais, o filho deste casal não terá pré-disposição a doenças genéticas.
Atualmente, o aconselhamento em geral é feito apenas por pessoas que possuem antecedente de doenças genéticas na família. "Daqui a dez anos, isso estará mais acessível. Então, a prática será realizada a despeito da predisposição familiar", prevê Raski.
O aconselhamento, porém, é apenas o primeiro passo. O segundo depende principalmente da capacidade da ciência de desvendar a base genética de algumas doenças. As perspectivas, porém, são boas. "O número de males diagnosticáveis vai aumentar entre dez e vinte vezes", diz Luiz Vicente Rizzo, imunologista e superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo.
O maior desafio será encontrar a base genética das doenças mais comuns, como obesidade, problemas cardíacos e câncer - que são provocadas por vários fatores. Se a luz se abrir sobre essas questões, os pais de uma criança que tiver pré-disposição a diabetes ou câncer de pulmão, por exemplo, poderão modificar os hábitos de vida desse filho ou buscar intervenções para evitar a manifestação dos males.
Cortando o mal pela raiz - Outro caminho que deverá ajudar na saúde das crianças do futuro é o diagnóstico genético pré-implantacional. Em tese, pode-se dizer que esse pretende ceifar o mal pela raiz - ao contrário do aconselhamento genético, que pode apenas alertar os pais sobre eventuais complicações futuras.
O método, que só pode ser realizado na reprodução assistida, consiste em escolher o melhor embrião para a implantação. Idealmente, o "eleito" estaria livre de doenças genéticas específicas.
"É um procedimento caro. Mas sua limitação é a insegurança, porque não é possível garantir que o bebê nascerá sem uma doença", explica Decio Brunoni, médico geneticista do berçário do Hospital e Maternidade São Luiz e coordenador do Centro de Genética Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Outro porém: o risco de se usar o procedimento como uma espécie de "cardápio de genes" para criar uma criança perfeita ainda é desconhecido. "Quando você mexe com os genes, há a possibilidade de causar outras doenças que talvez não conheçamos", acrescenta Luiz Eduardo T. Albuquerque, diretor da clínica de reprodução assistida Fertivitro.
No início de 2009, nasceu a primeira bebê britânica cujo embrião fora selecionado para não carregar a variação do gene BRCA1 - relacionado ao câncer de mama. Apesar de animador, o resultado pode ser ilusório, já que não significa a descoberta para esse tipo de doença. "Com o câncer é diferente, pois em 90% dos casos são provocados por alterações genéticas acumuladas durante a vida do paciente. O câncer hereditário é o menos frequente", diz Brunoni.
A escolha do embrião perfeito soa como música para os ouvidos dos candidatos a pai e mãe. Mas ainda é uma melodia distante, pelos fatores já apresentados. Por isso, aposta a geneticista Mayana Zatz, colunista de VEJA.com, a reprodução seguirá inalterada por bom tempo. "O diagnóstico genético pré-implantacional é algo super sofisticado. Se isso acontecer, vai ser daqui a muito tempo. E a grande maioria das pessoas vai continuar se reproduzindo de maneira natural", afirma Mayana.
Enquanto esses procedimentos não avançam o sificiente para se tornarem populares, pesquisadores tentam facilitar o que já existe. É o caso da amniocentese, exame invasivo pelo qual é retirada uma amostra do líquido amniótico do útero da grávida para testar eventual má-formação congênita. Médicos pesquisam a possibilidade de realizar o exame, que pode diagnosticar males como síndrome de Down, apenas retirando sangue da grávida, com cerca de seis ou até oito semanas de gravidez.
Qual será a cor dos olhos do seu filho? Utilizando a regra de probabilidades aprendida no ensino fundamental, seria fácil descobrir quais as chances de uma criança nascer com olhos claros ou escuros. A ferramenta, no entanto, pode não fazer mais sentindo no futuro próximo. No ano passado, a clínica de fertilização americana Fertility Institutes anunciou em seu site que em pouco tempo disponibilizaria o serviço de escolha de cor de pele e dos olhos a partir do diagnóstico genético pré-implantacional - em que o melhor embrião é escolhido para a gestação.
Após críticas severas da comunidade médica, o anúncio foi retirado do ar. Mas permaneceu a dúvida: já é - ou será em breve - realmente possível fazer isso? Geneticistas ouvidos por VEJA.com acreditam que apontar e manipular os genes que determinam cor de cabelo, pele e olhos não é tarefa difícil atualmente. "Portanto, esse não seria um procedimento caro", afirma Luiz Vicente Rizzo, imunologista e superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein.
Outra escolha que está ao alcance da ciência é a do sexo do bebê. Nos Estados Unidos, a opção já está autorizada. Por aqui, porém, a prática é proibida pelo Conselho Federal de Medicina. Para especialistas, a escolha do sexo pode ser considerada o início da eugenia.
Mais difícil seria atender outras demandas paternas. Pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Nova York revelou que 10% dos entrevistados apoiavam testes genéticos pré-natais que favorecessem o desenvolvimento de filhos de porte atlético. Igual parcela queria interferir na estatura e 13%, na inteligência. Para os geneticistas ouvidos por VEJA.com, esses ainda são desejos mais distantes, levando-se em conta o que a ciência sabe hoje.
"Construir geneticamente um corpo atlético, por exemplo, é uma grande fantasia", sentencia Decio Brunoni, geneticista do berçário do Hospital e Maternidade São Luiz e coordenador do Centro de Genética Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "Não se sabe quais são os genes que formariam esse corpo atlético - devem ser centenas de genes. A grande maioria das características humanas são multifatoriais, dependem de dezenas de genes e da interação com meio ambiente."
O ceticismo dos especialistas pode desanimar também aqueles que querem gerar gênios, elevando geneticamente o Q.I. do filho na fase embrionária. "É impossível", garante Brunoni. "A pessoa nasce com o seu potencial genético, que é uma média do potencial da família. O resto é cultura." Segundo o geneticista, não há um gene específico que determina o grau de inteligência de um indivíduo. A responsabilidade recai sobre vários deles - e também sobre o conjunto. "Trata-se de uma pesquisa que se desenrolará durante todo este século. Por ora, não temos nenhuma perspectiva a respeito, indicando uma receita para construir um cérebro mais inteligente", vaticina.
A geneticista Mayana Zatz, colunista de VEJA.com, resume a o tamanho do obstáculo à frente da ciência. "Características do embrião como cor dos olhos, cabelo e pele dependem exclusivamente de genes - então, saberemos cada vez mais a respeito. Inteligência e outras, que dependem do ambiente, são mais complicadas", diz Mayana.
Fonte: http://veja.abril.com.br/complementos-materias/bebes-futuro/info-popup.shtml
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