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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Na floresta dos chimpanzés

Longe do contato humano, os primatas do Triângulo de Goualougo, no Congo, têm uma complexa cultura de fabrico de ferramentas - e muita curiosidade sobre nós.

Na floresta dos chimpanzés

No Parque Nacional de Nouabalé-Ndoki, um chimpanzé engrossa o coro de chamados que ressoa pela floresta.


Alguns anos atrás, quando montavam acampamento nas profundezas da floresta congolesa, Dave Morgan e Crickette Sanz ouviram o vozerio estridente de um bando de chimpanzés machos. O alarido foi ficando cada vez mais alto, sinal de que o grupo se aproximava pela copa das árvores.
Perceberam que os chimpanzés vinham em direção ao acampamento e logo se posicionariam acima deles. Mas, quando parecia que o bando estava a apenas algumas dezenas de metros, a floresta emudeceu. Alguns segundos se passaram, e então Crickette e Morgan ouviram um "Uuu" brando. Ergueram os olhos e viram um chimpanzé adulto espiando, perplexo.

Quando chimpanzés selvagens encontram seres humanos, em geral fogem em pânico. Isso é compreensível, pois a relação entre as duas espécies tem sido a de predador e presa. Essa desconfiança contra as pessoas é um dos fatores da enorme dificuldade para estudar os chimpanzés na natureza. Antes de ser possível observá-los, eles têm de aprender a não fugir em disparada na hora do contato, e esse processo de habituação requer muitos anos de diligente acompanhamento dessas criaturas pela floresta.

Uma coisa que jamais se espera de chimpanzés não acostumados conosco é que chamem seus companheiros quando encontram gente. Mas foi exatamente o que aconteceu. Outro chimpanzé apareceu logo em seguida. Depois um terceiro. E um quarto. Uma gritaria alucinada envolveu o arvoredo. Morgan e Crickette eram os cientistas, mas quem se comportou como se houvesse feito uma grande descoberta foram os outros primatas. O bando passou a noite inteira assistindo de camarote nas árvores ao acender do fogo, à montagem das barracas e ao preparo do jantar.

"Isso é o que os lenhadores devem ter visto por toda a África Central, e os caçadores ilegais atiraram em todos", diz Morgan, de 40 anos, da Wildlife Conservation Society (WCS). Morgan passou parte dos últimos dez anos vivendo com Crickette no Triângulo de Goualougo, em um naco de floresta de 380 quilômetros quadrados banhado pelos rios Ndoki e Goualougo, no norte da República do Congo. Ele e Crickette maravilharam-se com o encontro, mas começaram a se perguntar como aquilo iria terminar. Escurecia. Onde os chimpanzés iriam dormir?

"É claro que eles resolveram fazer seus ninhos logo acima das nossas barracas", conta Morgan. "Beleza!, eu disse, mas nossos rastreadores me desiludiram: 'Que nada, rapaz, isso é má notícia'." Era verdade: a noite inteira os chimpanzés berraram, sacudiram galhos, urinaram e defecaram em cima das barracas e jogaram gravetos em nosso grupo. Ninguém dormiu. Ao amanhecer eles desceram das árvores e ficaram no chão, assistindo enquanto acendíamos o fogo e fazíamos café. Depois, discretamente, um a um, foram desaparecendo no matagal.

Na ocasião em que esta revista publicou pela primeira vez relatos sobre os chimpanzés "curiosos" do norte do Congo, não corrompidos por contatos nocivos com os seres humanos e aparentemente ignorantes de nossa existência, não foram poucos os primatologistas que zombaram. "'Curiosidade, é? Mas como vocês definem isso?', eles diziam", conta Crickette, de 34 anos, que hoje é professora titular na Universidade de Washington em St. Louis. "Nem eu acreditei no coitado do Dave na primeira vez em que ele veio me contar sobre esses chimpanzés." Havia muito tempo já corriam histórias esparsas sobre grandes primatas na África Central que não tinham medo, seguiam os exploradores pela selva e se comportavam como se nunca houvessem visto um ser humano na vida. Mas que pudesse existir uma floresta inteira cheia deles era duro de acreditar.

Acontece que o Triângulo de Goualougo e o vasto e desabitado Parque Nacional de Nouabalé-Ndoki, onde ele se situa, são tão remotos e inacessíveis que permanecem intocados pela humanidade. A povoação mais próxima, Bomassa, um vilarejo de 400 habitantes dos pigmeus bantus-bangombés, fica a 50 quilômetros de distância em uma árdua viagem a pé. Não há caçadores ilegais nem madeireiros nem pessoa alguma vagueando pela área. Os únicos seres humanos que um chimpanzé de Goualougo talvez tenha a chance de encontrar na vida são Morgan, Crickette e os poucos membros de sua equipe.

De início, a WCS, que coadministra dois dos parques nacionais do Congo, pensara em deixar o Triângulo de Goualougo totalmente intocado, como uma espécie de reserva dentro da reserva, vetado inclusive à influência corruptora da ciência. Mas esse plano mudou na guerra civil de 1997, quando a Congolaise Industrielle des Bois (CIB), a madeireira com direito de exploração na concessão de Kabo, uma área vizinha, construiu um cais para transportar madeira pelo rio Ndoki poucos quilômetros ao sul da confluência com o Goualougo. Como logo a CIB estaria roçando nas fronteiras do triângulo, a WCS decidiu que era imprescindível pôr os pés no território. "Tínhamos de chegar aqui primeiro que as madeireiras", diz Morgan. Em 1999, ele enveredou por Goualougo com um único ajudante congolês e estabeleceu um dos mais remotos centros de estudo de grandes primatas do planeta.

O êxito de Morgan em resistir naquele fim de mundo apenas com acomodações espartanas e irrisório apoio logístico deve muito a Crickette, que foi para Goualougo em 2001 e até hoje é a parceira de Morgan na ciência e na vida.

Quando estive no triângulo em 2008, quis ver como estavam esse éden e seus habitantes supostamente inocentes. Goualougo continua a ser um reino encantado de primatas, com assombrosa densidade populacional de gorilas e chimpanzés. Coisas raras em qualquer outra parte da África acontecem aqui. Morgan e Crickette viram chimpanzés e gorilas comendo frutos da mesma árvore (não é bem como um caso de leão e cordeiro deitados lado a lado, mas aos primatologistas causa a mesma estranheza). Viram chimpanzés bater no peito de punhos fechados, como se imitassem seus vizinhos gorilas. Mas a mais espetacular descoberta em Goualougo nos últimos anos é o desenvolvimento de algo que só pode ser chamado de cultura dos chimpanzés: uma tradição de usar complexos "kits de ferramentas". Após uma década de resolutos estudos de Morgan e Crickette, a questão em Goualougo não é mais o pouco que os chimpanzés sabem sobre nós. Agora é quanto sabemos sobre eles.

Em uma grudenta manhã de setembro, no início da estação das chuvas no Congo, Morgan, Crickette e eu deixamos o acampamento-base de Goualougo ao amanhecer com nosso rastreador Bosco Mangoussou e seguimos por uma das batidas trilhas de elefante. O sol mal penetra pela copa das árvores e já os enxames de abelhas meliponíneas, que não têm ferrão e são atraídas pelo suor, aderem a qualquer pedaço de pele sem a proteção de pomada mentolada. Seguimos em ziguezague para não pisar nos montes de esterco de elefante e nas frutas podres que impregnam o ar com seu odor forte. É a variedade de frutas, mais de duas dúzias de espécies comestíveis dos mais variados tamanhos, que faz de Goualougo um hábitat tão atrativo para os chimpanzés. Nosso destino é o território principal da comunidade Moto, um dos 14 grupos distintos de chimpanzés que têm seu lar no Triângulo de Goualougo.

De quando em quando chega à floresta um som composto de arquejos seguidos por um grito, a vocalização conhecida em inglês como pant-hoot. Quando isso acontece, Morgan ajusta sua bússola e saímos em disparada através do emaranhado de sarças espinhentas e cipós nodosos. Mangoussou, um pigmeu babenzélé com 1,50 metro de altura e dentes lixados para torná-los pontudos, vai na frente, às vezes abrindo caminho no mato com uma tesoura de jardineiro. Depois de cinco minutos de corrida, avistamos a uns 40 metros do chão meia dúzia de chimpanzés descansando sobre um mogno africano.

Observamos com binóculos uma travessa fêmea subadulta que migrou recentemente para a comunidade Moto. Ela brinca de pega-pega com Owen, um juvenil órfão cuja mãe foi morta por um leopardo. Com um graveto entre os dentes, a fêmea (que Morgan e Crickette batizaram de Dinah, o nome de minha mulher) alcança Owen e o imobiliza em um galho próximo. E então acontece uma coisa impressionante.

Dinah espia uma nuvem de abelhas saindo de um orifício próximo ao tronco principal da árvore. Ela se põe em pé num salto, larga Owen e arranca um galho de grossura e comprimento aproximados aos de um braço humano. Com a ponta rombuda, ela começa a bater no tronco. Sabe que em algum lugar dentro de uma fenda de difícil acesso há uma colmeia com um favo de mel.

As batidas ritmadas de Dinah ecoam alto pelas árvores em volta. Ela pega sua clava com o pé e vai pendurada até o outro lado do tronco para conseguir um ângulo melhor. Arranca um raminho de um galho, enfia-o na colmeia e revira-o, como se estivesse pegando com faca um resto de maionese no fundo do vidro. Retira o graveto, cheira-o e percebe que não há mel. Joga-o fora e recomeça a bater. Depois repete o processo com sete gravetos. Finalmente, após 12 minutos espancando a colmeia, Dinah introduz o dedo numa fresta e parece arrancar de lá um pouquinho de mel, que vai direto para a boca. Mas, assim que ela começa a apreciar os frutos de seu trabalho, Finn, o macho alfa e valentão da comunidade Moto, desce de um galho vizinho com o pelo eriçado, como se estivesse indignado por ver aquela jovem presunçosa degustando uma iguaria doce em sua presença. Ele arremete contra Dinah, que larga a clava e foge para outro galho. Morgan e Crickette batem palmas. "Essa é uma das melhores observações de arrombamento de colmeia já vistas!", exulta Crickette.

O fato de essa técnica de extrair mel nunca ter sido observada em outros centros de estudo de chimpanzés fora da África Central leva a crer que ela não faz parte do conjunto de comportamentos inatos desses primatas, sendo, portanto, uma habilidade aprendida e transmitida culturalmente. Uma das coisas fascinantes no comportamento de Dinah é a adoção de dois tipos de ferramenta, uma clava grande e um graveto, usados em sequência para atingir seu objetivo.

Essa não é a única forma de uso de ferramentas em série em Goualougo. No exato momento em que vemos Dinah golpear a colmeia, uma câmera montada nas proximidades de um cupinzeiro a 1 quilômetro dali filma outra chimpanzé fêmea, uma matrona da comunidade Moto chamada Maya, ocupada no que talvez seja a mais refinada forma de uso de ferramentas em série por um animal não humano.

Maya chega ao cupinzeiro, uma estrutura bulbosa e dura como rocha com o triplo da altura dela, trazendo na boca vários talos de planta que usará para pescar os altamente calóricos ocupantes daquele ninho. Primeiro, enterra um graveto grosso em um orifício do cupinzeiro e o alarga com movimentos vigorosos. Depois recorre a um caule fino e flexível que ela arrancou de uma planta. Já foram vistos chimpanzés em outras partes da África pescando cupins com utensílios desse tipo, mas Maya vai além: ela modifica a ferramenta. Passa entre os dentes cerrados 15 centímetros de uma das extremidades do caule para criar uma ponta cerdosa e úmida como um pincel, depois endireita as fibras espremendo-as na mão fechada. Com a destreza de um arrombador de cofres, ela introduz o caule-pincel no orifício, puxa-o para fora e come alguns cupins que vieram grudados nas fibras de sua varinha.

O notável na sonda de Maya é que ela representa um aprimoramento. Não aconteceu simplesmente que algum chimpanzé esperto descobriu ser possível arrancar um talo de planta e usá-lo para pescar cupins - o que já seria impressionante. O sensacional é que, depois dele, algum outro chimpanzé inventou um jeito ainda melhor de fazer isso. A ponta cerdosa não é um aperfeiçoamento qualquer. Morgan e Crickette tentaram pescar cupins com varas de pontas cerdosas e sem cerdas e constataram que pegavam dez vezes mais cupins com a ferramenta aperfeiçoada. Sem uma máquina do tempo, nunca saberemos como a cultura humana começou, mas deve ter sido mais ou menos assim: uma descoberta simples aproveitando outra já existente.


"Goualougo é o único lugar na Terra em que os seres humanos terão a chance de ver a essência de uma cultura de chimpanzés", diz J. Michael Fay, o conservacionista da WCS que ajudou a criar o parque de Nouabalé-Ndoki. "Se 95% dos chimpanzés no mundo não vivem desse modo, é por causa da espécie humana." No Parque Nacional de Kibale e na Reserva Florestal de Budongo, dois dos mais importantes locais de estudo de chimpanzés em Uganda, cerca de um quarto da população tem ferimentos causados por armadilha. Em Gombe, a área da Tanzânia estudada pela pioneira Jane Goodall, restam uns 100 chimpanzés, cercados por seres humanos.

Eis uma questão importante e perturbadora: e se, em toda parte, os cientistas pensam estar observando chimpanzés em seu estado natural, mas na verdade estão estudando um comportamento desvirtuado pela presença humana?

Os chimpanzés têm enorme capacidade de adaptação. Eles conseguem viver bem tanto nas selvas úmidas do Congo como na árida orla de savana do Senegal. Mas, de acordo com a hipótese da fragilidade das culturas do primatologista holandês Carel van Schaik, talvez estejamos subestimando a fragilidade do repertório de atitudes dos chimpanzés. Para que nossa presença distorça o comportamento deles, não é preciso derrubar definitivamente a floresta. Até o desmatamento seletivo e a caça ocasional podem provocar conflitos entre grupos ou reduzir o número de cupinzeiros em que se alimentam.

Morgan e Crickette têm uma hipótese convincente: com menos cupinzeiros e, portanto, menos oportunidade para os chimpanzés jovens aprenderem com os mais velhos as técnicas de uso de ferramentas, a cultura dos chimpanzés pode diluir-se lentamente e os comportamentos complexos podem desaparecer. Os dois cientistas logo terão a oportunidade de testar sua hipótese. Dentro de alguns anos, a CIB começará a extrair madeira em um setor da floresta a leste do rio Goualougo chamado de Zona C. Por isso, desde 2002 o grupo de pesquisa faz rigorosos estudos de transecção linear na Zona C para obter um nítido quadro do comportamento dos chimpanzés antes e depois da exploração de madeira.

A Zona D, uma área a oeste do triângulo que a CIB começou a explorar há cinco anos, dá uma boa ideia do que poderá acontecer na Zona C. "Era uma bela floresta em 2004", lamenta Morgan quando chegamos de piroga e desembarcamos na Zona D. É evidente que entramos em um ambiente distinto. Atravessamos muitas estradas lamacentas, algumas delas largas como uma avenida de duas pistas, ladeadas por raízes arrancadas e toras apodrecidas.

A extração de madeira pela CIB respeita os mais severos padrões de sustentabilidade e responsabilidade ambiental do ramo madeireiro. "Essa é a melhor madeireira da África Central", diz Paul Telfer, diretor do programa da WCS no Congo. "Eu preferiria que não houvesse nenhuma extração, mas, se é para ter uma madeireira vizinha de um parque, melhor que seja a CIB."

Ainda assim, a paisagem foi seletivamente devastada, e não há chimpanzés em parte alguma. Seis anos atrás, quase todos os símios que Morgan e Crickette viam na Zona D eram ingênuos. Hoje, quando farejam seres humanos, eles se escondem ou fogem. Aprenderam a nos temer.

A maioria dos 400 e tantos chimpanzés que Morgan e Crickette encontraram em Goualougo não demonstra a mesma curiosidade de antes. Quanto mais tempo os pesquisadores permanecerem lá e quanto mais desmistificarem os prodígios dessa floresta primeva, mais raros se tornarão os encontros com animais ingênuos. Estudar e conservar os chimpanzés implica, inevitavelmente, mudá-los.

Mas o triângulo é apenas um cantinho de uma floresta vasta e inexplorada. Antes de partir de Goualougo, caminho até o extremo sul da região com Morgan e Crickette para passar duas noites acampado no território natal da comunidade Mayele, próximo à junção dos rios Goualougo e Ndoki. Aqui, em um trecho de mata que Morgan e Crickette visitam apenas ocasionalmente, encontramos um chimpanzé ingênuo.Assim que nos vê, ele dá gritos histéricos e se abaixa entre os galhos para poder enxergar melhor. Morgan põe sua mochila no chão e com delicadeza pega uma luneta do tipo que os caçadores usam para mirar veados a 300 metros de distância. "Esse chimpanzé nunca viu um ser humano", comenta ele.

O jovem macho agita um cipó com violência em uma exibição de fanfarronice juvenil, depois atira gravetos em nossa direção para ver como reagimos. Seus gritos não demoram a atrair outros, até que sete chimpanzés se juntam a ele nos galhos acima de nós, todos admirando fascinados aqueles macacos eretos e sem pelo espalhados pelo chão da floresta. Se viéssemos do espaço, não ficariam mais espantados.

Com cautela, sem desviar os olhos, os chimpanzés aproximam-se palmo a palmo de nós, até que por fim o mais jovem está em um galho a menos de 10 metros. Crickette entrega uma máscara cirúrgica a cada um de nós - para proteger os chimpanzés, não os seres humanos.
Recuamos um pouco e passamos várias horas observando os chimpanzés que nos observam. Por fim, temos de prosseguir. Há mais floresta a explorar, mais chimpanzés a encontrar. Nossa curiosidade esgota-se antes da deles.

Fonte: viajeaqui.abril.com.br

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